Firmes na esperança
Um buraco negro aberto para o abismo, um sorvedouro insaciável onde tudo desaparece é, para o comum das pessoas, a imagem primeira da morte. A nossa vida decorre à beira deste abismo que nos acompanha como a sombra, abismo do qual nos defendemos temerosos ou que pode também atrair-nos como solução radical para todos os problemas. Solução aparente, solução falsa, porque é apenas demissão e autodestruição. De qualquer modo, não é fácil vivermos lucidamente a fragilidade da nossa condição de seres condenados a morrer.
Pelo pavor de enfrentar a morte, quantas pessoas não conseguem olhar a vida de frente e aceitá-la com sereno realismo, quantas vivem o momento presente às arrecuas como quem é empurrado para onde não quer. E quando têm mesmo de enfrentar esse buraco negro e de se interrogar acerca da morte porque algo lhes diz que a destruição total das pessoas que amamos não pode ser, que fazem? Colocam diante desse buraco negro um espelho que lhes dá a ilusão de o além ser a continuação da vida presente. É como se ao morrer passássemos, por magia, para o lado de lá do espelho onde a vida presente continuaria, sem os pesos e sem os constrangimentos deste lado. É desse entendimento light da morte e da ressurreição, hoje tão promovido peia New-Age, que se burlam os saduceus quando apresentam a Jesus a história inverosímil daquela mulher que teve, consecutivamente, sete maridos. Na ressurreição, perguntam, de qual deles será ela esposa?
Condicionados como estamos na vida presente pelo espaço e pelo tempo, toda a nossa linguagem supõe e reflete esses parâmetros. Aqui precisamos de lutar diariamente contra a morte alimentando-nos, descansando, reproduzindo-nos, criando laços que nos sustentem e nos defendam de tudo aquilo que ameaça a nossa vida. Mas a vida dos ressuscitados é de outra ordem, como nos diz Jesus no evangelho de hoje. Há realidades próprias deste mundo que terminam na morte, e há-as que perduram para lá do espaço e do tempo: aqueles que forem dignos de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos não se casam nem se dão em casamento. Na verdade, já não podem morrer pois são como os anjos e, porque nasceram da ressurreição, são filhos de Deus. (Lc. 20,…) Como filhos de Deus libertos da morte e do pecado, os eleitos estão unidos a Cristo, são um só com Cristo mantendo embora a sua identidade, e reinam com Cristo. Com Ele, pelo Espírito Santo, amam o Pai e, com os anjos, contemplam o rosto de Deus e gozam em plenitude a alegria da sua Verdade, Bondade e Beleza. É esta a Vida Eterna que nos foi prometida e que, vigilantes na fé, ousamos esperar.
A fé e a esperança cristãs não são uma droga que nos anestesia, que nos tira da realidade. O acontecimento da morte e da ressurreição de Jesus que é o ponto de partida da nossa fé e da nossa esperança, ilumina toda a nossa realidade e leva-nos a aceitá-la com as suas alegrias e grandezas e também com as suas limitações e sofrimentos. Aceitamos com gratidão a vida e a morte como dons do Senhor, como as duas faces da mesma moeda, pois não há vida sem morte. Toda a espécie de vida neste mundo outra coisa não é senão um diálogo, às vezes violento, entre a morte e a vida. É assim também na vida espiritual.
Ao sermos mergulhados nas águas regeneradoras do Batismo morremos e ressuscitamos sacramentalmente com Cristo para vivermos a sua mesma vida de filho de Deus. Assim, como ensina S. Paulo, nós cristãos levamos sempre, no nosso corpo, o morrer de Jesus para que também a sua vida de ressuscitado se manifeste em nós. (2Cor4,10) Mortos para o pecado e vivos para Deus, (Rm 6,11) vivemos como quem perde, melhor, como quem dá a sua própria vida para a encontrar, transfigurada. Vivificados pelo Espírito de Cristo, estando ainda neste mundo mas como cidadãos do Céu, a nossa vida é muito mais que um mero processo biológico que terminará na morte física. Temos Vida Eterna a germinar e a crescer em nós e, como proclamamos na parte final do Credo, esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir.
Mania das grandezas? Esperamos o que Jesus nos prometeu, porque Ele no-lo prometeu. Esta é a ditosa esperança, a luz do oitavo dia que orienta e configura a nossa vida neste mundo e ilumina também a nossa morte. Vivemos como quem semeia na vida presente para recolher na vida futura. É por isso que rezamos com a Igreja estas palavras: para os que creem em vós Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma; e, desfeita a morada deste exílio terrestre, adquirimos no céu uma habitação eterna.(Prefácio da missa dos defuntos)
Como aqueles irmãos hebreus martirizados de que nos fala a 1ª leitura, sabemos que o Rei do Universo nos ressuscitará para a vida eterna, temos esperança em Deus de que Ele nos ressuscitará porque nos criou para O amarmos e servirmos nesta vida e para gozarmos eternamente no paraíso a plena visão do seu rosto glorioso. Sim, viveremos eternamente a sua mesma vida de amor como seus filhos, como eternos recebedores e retribuidores do seu amor. Deus é um Deus de vivos, não de mortos, diz-nos Jesus no Evangelho deste domingo.
Pelas palavras de Jesus sabemos que todos os que vivem e morrem no seu amor estão vivos porque participam da sua vitória sobre a morte. Sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos, lemos na 1ª Epístola de S. João (1Jo…) Para nós cristãos, o centro desse buraco negro que é a morte é precisamente o lugar da manifestação de Cristo ressuscitado a cada um de nós, o lugar do óbito, do encontro com Ele, o lugar onde nos assume definitivamente, o lugar do nosso trânsito, da nossa passagem com Cristo deste mundo para o Pai. Como S. Paulo nos ensina também, para quem ama o Senhor, morrer é ir desta para melhor, desta para melhor vida. A esperança da maravilha que será o nosso encontro com Cristo transfigura a nossa existência.
No meio deste mundo que desconhece os novíssimos e toma as coisas penúltimas como últimas, não é fácil mantermo-nos firmes nesta fé e nesta esperança teologais e nelas perseverarmos. São, por isso, preciosas para nós, as repetidas afirmações de S. Paulo na 2ª leitura acerca da fidelidade e do poder do Senhor. A consciência da grandeza do nosso destino manter-nos-á despertos e firmes e fará de nós indicadores e sinais de esperança para quem, desorientado, está neste mundo sem saber de onde vem e para onde vai.
+ J. Marcos
Bispo coadjutor de Beja
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