Missão e Vocação
Chamados do e para o povo
1. Partir de Cristo para as periferias
Começa o mês de Dezembro e também o ano litúrgico com o Advento. O fim do ano civil está à porta. No hemisfério norte temos o inverno e no sul, o verão. Na mudança de estação acontece o Natal, para os cristãos memória do nascimento de Jesus Cristo. Para toda a humanidade uma data significativa pelo peso que os países do mediterrâneo tiveram na evolução da civilização mundial, apesar da diversidade cultural e religiosa. Mas a que se deveu esta evolução? Sem querer exaltar o meu credo cristão, vou realçar nesta nota dois factores importantes, senão decisivos, para isto assim acontecer.
Primeiro, o acontecimento histórico da pessoa de Jesus Cristo, nascido na plenitude dos tempos de acordo com a revelação cristã, embora nem o povo das suas origens biológicas nem a terra onde nasceu estivessem no centro da civilização mediterrânica, pois o centro político era Roma e não Belém ou Jerusalém e o centro cultural era Atenas. Mas a narrativa da sua vida e mensagem foram uma novidade nunca vista. Não foram o poder económico ou politico nem muito menos o fruir dos prazeres da natureza que orientaram a sua vida e mensagem, mas o remar contra a corrente e a paixão pelo bem da humanidade até ao dom da própria vida.
Mais cedo ou mais tarde, tudo teria terminado, perdido a sua força exemplar, se tudo tivesse ficado pela morte prematura e violenta de Jesus. E passo ao segundo factor decisivo, o chamamento de alguns discípulos, que viram, ouviram e tocaram a pessoa de Jesus, mas também foram testemunhas da sua ressurreição, que culminou com a vinda do Espírito prometido e os tornou testemunhas intrépidas, prontas a obedecer antes a Deus que aos homens, sem por isso serem revolucionários ou terroristas, dispostos a imitar o Mestre pelo dom da vida, pela fé em Jesus e o amor ao próximo.
Embora nestes dois mil anos após a morte de Jesus nem todos os que se disseram ou dizem seus discípulos o foram de verdade, no entanto, sempre, em todas as épocas e lugares, houve e há discípulos a sério e à letra do Mestre Jesus. Aponto apenas para o atual sucessor do apóstolo Pedro, o Papa Francisco, que, apesar da idade, tem um discurso e gestos que chamam a atenção para os simples e os poderosos deste mundo.
Na mais recente viagem a três países de África, Quénia, Uganda e República Centro-africana, como há poucas semanas a países pobres e violentos da América Latina, ele, sem medo do terrorismo ou das guerrilhas, foi mostrar-se solidário para com os pobres e apelar à reconciliação dos povos e das religiões, para que cesse a exploração da natureza e dos pobres e se fomente o encontro e diálogo entre as religiões, agora muçulmanos e cristãos e entre países pobres e ricos. No Quénia, a 2 de abril do corrente ano, radicais islâmicos mataram 147 estudantes cristãos no campus de uma universidade. A resposta dos cristãos não é o apelo à violência, que nunca é solução, mas à reconciliação pelo encontro, o diálogo e o respeito mútuo. Há lugar para todos.
2. Chamados do povo para o servir
No dia 8 de dezembro, solenidade da Imaculada Conceição, padroeira e rainha de Portugal, data em que o Papa abre a Porta Santa da Basílica de S. Pedro e dá início ao Ano Jubilar da Misericórdia, em Beja ordenamos seis presbíteros, que há vários anos estão a discernir a sua vocação e a formar-se entre nós, mas não têm as suas raízes familiares no Alentejo. Três vieram do Brasil, membros do Instituto de vida consagrada Milícia de Cristo. Os seus nomes são Adriano, Adenilson e Diogo. Dos outros três, um veio de Lamego, o Amadeu, outro de Lisboa, o Luís e outro da Nigéria, o Godfrey. De origens diferentes, chamados do meio do povo, não para ser servidos, mas para ser enviados em serviço do povo, um serviço de alta qualidade, pois não possuem prata ou ouro, mas o Espírito de Jesus, que oferece a sua vida pelo povo, para que este tenha vida e a tenha em abundância (cf At 3,6).
Esta qualidade de vida restitui a todos os que os recebem a dignidade de filhos de Deus e irmãos uns dos outros. E não realizam esta missão como pessoas desesperadas, sem alternativas de vida, amargas, violentas, mas com alegria, preferindo antes sofrer que fazer sofrer, procurando realizar nas suas vidas o que Jesus proclama nas bem-aventuranças: Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu. Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu; pois também assim perseguiram os profetas que vos precederam (Mt 5, 8-12).
A diocese de Beja alegra-se com este dom precioso da vocação sacerdotal destes jovens, felicita as suas famílias e pede a Deus que esta meia dúzia de discípulos de Jesus, chamados do meio do povo por intermédio da Igreja de Beja, se tornem ministros da misericórdia de Deus.
Neste dia 8 de dezembro, há 50 anos, encerrava em Roma o Concílio Ecuménico Vaticano II, que o bom Papa João XXIII havia anunciado a 25 de janeiro de 1959 e no discurso de abertura, a 11 de outubro de 1962, afirmava discordar dos profetas da desgraça (IV,3) e que a Igreja devia afirmar a verdade e validade do Evangelho usando mais o remédio da misericórdia que o da severidade (VII, 2). Isto mesmo pretende o Papa Francisco com o Ano Jubilar da Misericórdia, que hoje se inicia. É pela misericórdia que Deus manifesta o seu poder.
† António Vitalino, bispo de Beja
25NOV2015
Emergência educativa
1. Terrorismo e educação
Na última nota escrevia o seguinte: A educação na família, na escola, nas comunidades religiosas deve ajudar a construir a paz. Bem-aventurados os que sofrem por causa da paz, proclamou Jesus. Sem avaliar todo o alcance desta afirmação, nesta semana, no torvelinho dos acontecimentos, recebi muitos incentivos para a explicitar melhor e aplicar aos ambientes que nos envolvem.
Em primeiro lugar, ao ler as propostas do sínodo sobre a família, percebi que há uma situação global, que dificulta a tarefa educativa. Na miragem ideológica dum mundo envolvido na terceira guerra mundial em fragmentos, como se expressa o Papa Francisco, afirma-se o individualismo e o direito aos bens de consumo e esquece-se a educação primordial para a relação e a pertença, a começar pela família. Por isso os outros, a própria natureza, são vistos como concorrentes e obstáculos a eliminar,como o inferno, como se expressava Sartre, e não como fazendo parte de nós, do nosso bem estar e aos quais somos devedores. Como diz S. Paulo (Rm 13, 8): não fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser o amor.
Em segundo lugar, foi o Congresso Mundial promovido em Roma pela Congregação para a Educação Católica, na semana passada. No encontro com o Papa, a 21 de novembro, uma responsável educativa perguntava como podem os educadores ser construtores da paz. Na sua resposta espontânea o Papa afirmava que é preciso ir às periferias, ao mundo dos pobres e não apenas fazer obras de beneficência para eles, dar-lhes de comer e ensiná-los a ler, mas a caminhar juntos com a sua experiência de pessoas feridas na sua humanidade. Não basta educar dentro de muros, cultivar uma cultura seletiva, de segurança, da inteligência formal, mas arriscar no cumprimento das quatorze obras de misericórdia.
Em contraste com estes pensamentos estavam as notícias veiculadas pelos meios de comunicação social: a caça aos terroristas, os ataques aos focos de terrorismo, o controle dos refugiados, a construção de defesas, o estado de emergência. Será este o caminho da construção da paz, não apenas em algumas partes do mundo, mas para todos e com todos?
A educação para os valores humanos, implica também a abertura à transcendência, expressa de muitas maneiras, também a religiosa, mas nunca proselitismo ou fundamentalismo religioso, como dizia o Papa no diálogo atrás referido. Um sistema educativo fechado, neopositivista, sem abertura à transcendência, que não toca o coração, os comportamentos e as relações fundamentais da pessoa, fecha o homem em si mesmo e não pode educar para o verdadeiro humanismo, por mais génios que produza, mas, infelizmente, também monstros.
2. Como educar para um humanismo cristão?
Como escrevi atrás, a educação, mesmo em famílias e escolas católicas, nunca pode ser proselitista ou neopositivista, mas educar para os valores, aberta à transcendência, à relação com os outros e com a natureza, procurando o seu bem.
A educação para a fé e a sua explicitação religiosa, na escuta da Palavra de Deus, no conhecimento da mensagem e pessoa de Jesus Cristo, na oração, na prática dos mandamentos e das obras de misericórdia, ajuda a fazer crescer a pessoa na verdade do seu ser e a desenvolver a sociedade nas suas múltiplas relações, construindo a paz na verdade, na justiça, na igualdade, na fraternidade.
Campos de refugiados, situação prolongada de desemprego, sobretudo de jovens, a fome, condições sub-humanas de vida, não são ambiente propício para a construção da paz mundial. Por isso não podemos pactuar com estas situações ou praticar apenas as obras de misericórdia corporais. É preciso despertar as pessoas para a sua dignidade, que se realiza nas múltiplas relações e no sentido de pertença a uma única humanidade, a família humana, para cujo desenvolvimento todos devemos contribuir. É caminhando que se faz caminho, como se ouve repetir. A educação não pode ser apenas para o conhecimento, mas para o coração, os afetos, os sentimentos e a ação.
Resta-nos um longo caminho a percorrer. Mas com lamentos, de braços caídos, não avançaremos. Os governos devem estar abertos e apoiar as experiências educativas que vão nesse sentido, em vez de querer prescrever um único tipo de escola, que muda conforme as mudanças dos partidos no governo. Basta de experimentalismos e deixemos que a sociedade civil com a família, avance e possa transmitir os valores em que acredita.
A Igreja termina o seu ano litúrgico com a solenidade de Cristo Rei, que afirma a sua soberania, não pelo poder das armas, pelo medo, pela ditadura da opressão, mas pela verdade do amor, pelo perdão, pelo dom da vida na cruz. O seu poder não é deste mundo, mas é oferecido a todos os que viveram, vivem e hão-de viver neste mundo. Só Ele nos pode salvar desta geração perversa, mas carente de amor. E quem é da verdade ou a busca de todo o coração reconhecerá n’Ele a fonte que sacia a sua sede e mata a sua fome, pois Ele é caminho, verdade e vida.
† António Vitalino, bispo de Beja
23NOV2015
Santos e Defuntos
1. Quem são os santos?
Um bispo, numa celebração de crismas, em que falou da vocação dos cristãos à santidade, perguntou a um acólito, se queria ser santo. Este respondeu espantado: isso não, sr. Bispo. Afinal o que significa ser chamados à santidade, para assustar este jovem?
O evangelho de S. Mateus termina o capítulo sobre as bem-aventuranças com o desafio: sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5, 48). Afinal será a perfeição o mesmo que santidade? S. Lucas no capítulo sobre as bem-aventuranças usa uma palavra diferente: sede misericordiosos como também vosso Pai é misericordioso (Lc 6, 36). Será santidade, perfeição e misericórdia a mesma coisa?
As palavras expressam as nossas ideias, mas também os nossos sentimentos, a nossa relação afetiva com o que significam e também o meio e ambiente sociais do tempo em que são usadas. Por isso temos de escolher as palavras mais adequadas para exprimir não apenas as nossas ideias, mas também os nossos sentimentos e os das pessoas com quem nos relacionamos.
Neste caso inclino-me para a palavra misericórdia como expressão mais adequada da santidade cristã, pois a caridade é o ápice da perfeição. Amar, servir, perdoar, reconciliar-se, rezar pelos inimigos, dar a vida por eles, foi o que fez Jesus e nos convida a fazer o mesmo. Nisto consiste a santidade e a perfeição cristã. É um caminho, um comportamento, um objetivo e a finalidade da vocação cristã e dos dons sacramentais que recebemos, pois sem eles não será possível ser santo a partir do nosso esforço pessoal.
Por isso S. Paulo (1 Co 13) fala da caridade como a única virtude que permanece depois da morte, pois Deus é amor. E o místico carmelita S. João da Cruz diz que no ocaso da vida seremos julgados pelo amor. Nele consiste a santidade.
Na visão do Apocalipse, último livro da Bíblia, lemos uma bela passagem usada na liturgia da Festa de Todos os Santos, quando fala da visão da multidão imensa daqueles que estão diante do trono na presença do Cordeiro (Jesus Cristo ressuscitado):esses são os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro (Ap.7, 14).
Estes são os santos daquela dimensão chamada Igreja triunfante. São os que acreditaram em Jesus Cristo e se deixaram salvar pelo dom da sua vida na Cruz, de onde brotaram os sacramentos, os canais da graça de Deus. Por isso todos somos chamados a ser santos, acolhendo o dom da vida de Jesus e reconhecendo-O presente nos pobres, nos despojados da sua dignidade de filhos de Deus e irmãos nossos. A santidade é o amor de Deus derramado nos nossos corações pelo seu Espírito e a projetar-se nos outros, dando muito fruto.
2. Rezar pelos defuntos?
O mês de novembro começa com a festa de Todos os Santos, mas popularmente é conhecido como o mês dos defuntos. Este é o aspeto que nos toca a todos de perto, mais que a vocação à santidade. A natureza morre e regenera-se, do outono à primavera passando pela letargia e repouso do inverno. Mas para muitos não há regeneração. Ficam-se pelo luto, pelo tabu do sofrimento e da morte. Desenvolvem-se psicologias e terapias para o trauma da morte. São mais um treino do esquecimento que uma cura interior, uma regeneração da confiança na vida em todos os seus estádios.
Para o cristão há a fé na vida eterna, pois Jesus ressuscitou. Rezar pelos nossos entes queridos falecidos é uma afirmação da fé, confiando-os à misericórdia de Deus, que os pode fazer participantes da sua vida para sempre, purificando-os de outros apegos ou amores que não o desejo de contemplar para sempre a face do Senhor.
Este ato de fé vai transformando o luto, a solidão, a morte em consolação, conforto e vontade de continuar a viver na esperança dum encontro feliz para sempre. Por isso, faz sentido rezar pelos defuntos que marcaram as nossas vidas. Isso é uma terapia, uma cura para quem está de luto e um aprofundamento da comunhão de vida entre nós e os defuntos em Deus. A comunhão dos santos torna-se uma realidade e cura os nossos traumas.
A ajuda e o conforto espiritual são muito importantes nestas situações. Dá pena ver o sofrimento de quem não tem fé e vive situações de luto, de separação de entes queridos. Também na Igreja há movimentos de entreajuda para as diversas situações de luto, como o movimento esperança e vida, mas pouco presente na nossa ação pastoral. Confrange o nosso coração ver como pessoas e seitas aproveitam esses momentos de luto e sofrimento para aprisionar no seu gueto e nos seus interesses quem sofre na solidão.
Um cristão não pode ficar indiferente perante estas situações. Mas como proceder? Há formações para tudo e investigação académica sobre o assunto, mas o mais importante é aproximar-se das pessoas e, com poucas palavras, fazer-lhes sentir que estamos ali, para acompanhar e ajudar no que for preciso.
As exéquias cristãs são uma expressão disso mesmo. São uma oração em momento de tribulação, mas animada pela crença na ressurreição, na vida eterna, na comunhão dos santos. Para quem já passou por morte de pessoas próximas e queridas e teve de presidir a exéquias, sabe bem o que isso significa na própria vida e na daqueles que compartilham a mesma dor. Aqui deixo este apelo para não deixarmos apenas aos psicólogos o acompanhamento na dor, mas aprendamos deles e do tesouro da fé cristã.
† António Vitalino, bispo de Beja
02NOV2015
Misericórdia e família
1. Caminhar juntos
No discurso de encerramento do Sínodo dos Bispos sobre a família o Papa Francisco termina com a seguinte frase, que manifesta abertura e encorajamento: para a Igreja, encerrar o Sínodo significa voltar realmente a «caminhar juntos» para levar a toda a parte do mundo, a cada diocese, a cada comunidade e a cada situação a luz do Evangelho, o abraço da Igreja e o apoio da misericórdia de Deus.
Vale a pena deter-se uns momentos a refletir sobre esta frase que resume toda a tonalidade do discurso e desafia toda a Igreja, nas diversas culturas e continentes, a olhar a família com novo olhar e acompanhá-la com uma nova atitude, mais evangélica e solidária.
Em primeiro lugar, o próprio sínodo significa isso mesmo. Os representantes dos bispos de todo o mundo procuram caminhar juntos, afinar o seu olhar e pensamento à luz do Evangelho, da tradição viva da Igreja e sensibilizar-se para a diversidade cultural dos sinodais dos diversos continentes e línguas.
Em segundo lugar, num diálogo atento e humilde, tentar diferenciar o essencial do relativo acerca da temática em diálogo, neste caso a vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo.
Por último, o Papa define uma nova atitude na relação com as famílias feridas ou fracassadas: levar a todos o abraço da Igreja e o apoio da misericórdia de Deus, e não apenas receitas ocasionais sem efeitos de cura, panaceias para iludir as pessoas e as comunidades.
Neste discurso o Papa Francisco retoma a linguagem evangélica de S. João XXIII, que convocou o concílio Vaticano II, não para definir dogmas ou condenar o mundo, mas para incutir esperança e luz à humanidade. Não se trata de negar a doutrina da Igreja e do Evangelho acerca da vontade de Deus sobre a comunidade familiar, mas de assumir a atitude de Jesus para com os doentes e feridos: a misericórdia, que não condena ou exclui, mas cura e salva.
Isto mesmo repetiu o Papa Francisco na homilia da Eucaristia conclusiva do Sínodo, a 25 de Outubro, comentando a cura do cego de Jericó, Bartimeu. Jesus ouve o grito do cego, ao contrário da multidão que o seguia e dos próprios discípulos, a quem intima para lho trazer. Esta é a missão da Igreja: escutar, parar, olhar com empatia e ajudar os doentes e feridos a integrar-se na comunidade.
A Igreja não existe apenas para os bons, mas para todos e tem de encontrar caminhos de inclusão na comunidade, de cura, de reconciliação para todos os que desejam e se deixam curar.
Também a Igreja diocesana se encontra em sínodo. No próximo sábado, dia 31, vamos realizar mais uma assembleia com clero, consagrados e leigos, para acertarmos o passo da nossa caminhada comunitária, aprovarmos algumas propostas e entrarmos no último ano do nosso sínodo mais motivados, unidos e apostólicos, levando a boa nova do amor salvífico de Deus a todas as pessoas com quem vivemos.
2. Povo a caminho
Na vasta área da diocese de Beja há muitos montes e recantos dispersos e fora do olhar diário das nossas comunidades paroquiais. Nas visitas pastorais dos bispos procuramos trazê-las para a atenção e cuidado dos responsáveis locais.
Por isso, este ano estão a decorrer as visitas pastorais ao concelho e arciprestado de Odemira, a maior área concelhia de Portugal e que abriga realidades muito díspares no contexto das populações do nosso país, desde imigrantes de todos os continentes para trabalhar sobretudo na agricultura até comunidades com identidades e modos de viver diferentes do habitual da tradição alentejana.
Na semana passada, D. João Marcos percorreu as paróquias confiadas aos membros da Milícia de Cristo, S. Martinho das Amoreiras, Relíquias, Colos, Santa Luzia, Vale de Santiago e Bicos, aí pernoitando, para contatar com as entidades e instituições, visitar os doentes, reunir com os colaboradores e rezar com as comunidades.
Em Beja realizou-se, no dia 24 de outubro, a solenidade de S. Sezinando, padroeiro da cidade, a assembleia diocesana do Renovamento Carismático (RCC) e os Professores de Educação Moral e Religiosa nas Escolas (EMRC) reuniram para aprofundar a sua ação durante este ano letivo. Fez parte de ambos os encontros a celebração eucarística presidida pelo Bispo.
No final do dia, na igreja de Santa Maria o bispo presidiu a uma solene concelebração da Eucaristia com Vésperas cantadas e a renovação da consagração da cidade a S. Sezinando,
assinalando também o quinquagésimo aniversário da morte de D. José do Patrocínio Dias. Assim se caminha e fortalece o peregrinar do Povo de Deus.
Outro momento importante da construção das igrejas locais é a ordenação e entrada solene dum novo bispo e a despedida do anterior. Foi o que aconteceu este fim-de-semana na vizinha diocese de Setúbal.
No dia 25 de outubro, com a participação da maioria dos bispos portugueses e de muitos outros vindos de várias partes do mundo, sobretudo membros da Congregação dos Dehonianos, a que pertence o novo bispo, foi ordenado D. José Ornelas de Carvalho, que foi professor de Sagrada Escritura na Universidade Católica e Superior Geral da sua Congregação durante doze anos.
Foi uma grande manifestação de Igreja, Povo de Deus, que acorreu em multidão e muitos ficaram na rua por não caberem dentro da catedral, seguindo a celebração através de grandes plasmas durante mais de três horas.
No dia seguinte, a 26 de outubro, na mesma catedral, assinalou-se o quadragésimo aniversário da ordenação do primeiro bispo da diocese, D. Manuel da Silva Martins, com a participação dos três bispos de Setúbal, além do Núncio Apostólico, de muitos outros bispos de Portugal e de muitos cristãos.
Assim caminha, cresce e se constrói o Povo de Deus.
† António Vitalino, bispo de Beja
28OUT2015
Quem e como educar
1. Urgência da educação
De muitos modos e amiúde se aborda o tema da educação, mas nem todos pensam o mesmo, embora usando palavras iguais ou semelhantes. Desde o iluminismo, sobretudo a partir de Rousseau que se propagou a ideia de que a natureza é boa e a educação corrompe a bondade natural do ser humano. Esta ideia continua subjacente na ideologia do género, quando afirma que a diferença sexual é uma questão da cultura e o ser humano deve ter a liberdade de escolher a sua identidade específica.
Estas ideologias têm contribuído para o desnorte de muita gente, que vive sem saber para onde caminha, experimentando no seu íntimo uma grande solidão, embora rodeado de muitas pessoas, por vezes atropelando-as. Toda esta situação convence-me cada vez mais da necessidade e urgência da educação no sentido da transmissão de princípios e valores estruturantes da personalidade.
Mas a transmissão natural e personalizante desses ideais de vida acontece a partir da geração por amor e do interesse afetivo dos progenitores pela criatura gerada. A frieza, a indiferença e o individualismo das relações familiares não favorece o desenvolvimento da personalidade, para a sensação de bem estar das pessoas e a sua integração harmónica na sociedade.
O Sínodo dos Bispos a decorrer em Roma sobre a vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo está a abordar este tema com muita atualidade. D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa é um dos participantes portugueses no Sínodo, afirmou que não podemos olhar para os indivíduos isolados, mas para as agregações familiares, quer estejam ou não de acordo com a moral católica.
A pastoral da Igreja falha redondamente quando não considera as pessoas praticantes na sua relação fundamental constituída pela família. Foram os nexos familiares que ajudaram a ultrapassar os anos de crise social e económica. Por isso a família é a escola e instituição social mais barata e eficiente. Quando a família falha, degenera em agressividade e violência, as sociedades enfrentam também uma grave crise.
A paixão pela educação tem de contar com a família. As escolas, os sistemas educativos, o Estado precisam de conectar com a família, procurar a sua colaboração e apoiar a sua instituição, para poder cumprir a sua missão. Devem estar ao serviço da família e não vice-versa. Também aqui se aplica o princípio da subsidiariedade, fundamental na doutrina social da Igreja e que, em muitos casos, é posto de parte, como se observa quando se defende a escola estatal como a única pública, sem atender à orientação familiar.
Neste mês comemoramos o cinquentenário da declaração do Concílio Vaticano II sobre a educação cristã, cujos princípios é bom recordar e implementar para bem da família e da sociedade. Sem uma visão correta da pessoa humana, uma sã antropologia, é impossível educar. Sem educação o diálogo e a convivência pacífica tornam-se impossíveis. Quem não estiver de acordo, comente e faça-me chegar os seus comentários.
2. A família na missão da Igreja
No Alentejo muitos membros da família não tem contato regular com as comunidades cristãs. Nas nossas assembleias dominicais predominam as crianças e as mulheres, sobretudo idosas. Faltam muitos membros da família nesse encontro dominical. Por isso temos de encontrar tempo e meios para nos encontrarmos com esses membros, importantes no agregado familiar e na educação dos mais novos. Aqui se aplica a expressão do Papa Francisco de que temos de ser uma Igreja em saída, uma Igreja que vai ao encontro das pessoas, dos idosos, dos doentes, dos pais sem tempo e sem ritmo dominical. Como? Precisamos de ser criativos.
Ainda esta semana, participando num evento social, tomei um pouco mais de tempo para falar com alguns participantes, sobretudo homens, que normalmente não se encontram com padres e muito menos com bispos. Pois ouvi testemunhos de vida que me comoveram e que normalmente não se escutam nem vêem nas nossas assembleias dominicais. Afinal há muitas atitudes de fé naqueles com quem normalmente não nos encontramos.
Como fomentar estes encontros e ajudar as pessoas e as famílias no seu desenvolvimento e apoiá-las nas suas potencialidades educativas e sociais?
Temos muitas oportunidades desperdiçadas. Queremos sempre falar e fazer discursos moralistas sem escutar as pessoas, com os seus problemas profundos e sabedoria natural.
Reuniões de pais, preparação de batismos, preparação de casamentos, de primeiras comunhões, de crismas, de ajuda social, etc. Mais que ensinar, precisamos de escutar, perguntar, ouvir as suas respostas e ajudá-los a escutar a Palavra de Deus mais que a nossa. Um gesto, um testemunho vale mais que mil palavras, diz-se.
Também na família e na escola precisamos de escutar os mais novos e ajudar-nos mutuamente a encontrar as respostas. Esta é a pedagogia de Jesus, como ouvimos no evangelho do jovem que foi perguntar-lhe o que é preciso para alcançar a vida eterna (Mc 10, 17 ss). Acompanhar, escutar, perguntar, ouvir e descobrir os caminhos da vida, na entreajuda fraterna, familiar e eclesial são sabedoria e património fundamental para aprofundarmos as nossas raízes e relações e ajudarmos quem está em crise pessoal ou comunitária.
† António Vitalino, bispo de Beja
12OUT2015
Assimilar ou integrar
1. Assimilar para conviver ou dominar?
Na minha experiência com migrantes, provenientes de vários países, continentes e regiões, falando a mesma língua ou tentando expressar-se num idioma comum, muitas vezes mal aprendido, pergunto-me como é possível convivermos em paz nesta Babilónia de línguas e de culturas. A emigração em massa, forçada, veio agudizar a necessidade de encontrarmos respostas satisfatórias. Por não o termos feito até agora, encontramos muitas dificuldades em ter êxito na presente situação, embora desde há muito sabemos que os guetos não ajudam a construir um povo coeso e pacífico.
Muitas tentativas têm sido experimentadas, mas continua a confusão das experiências fracassadas. Desde o apartheid, o multiculturalismo, a assimilação forçada, a integração às experiências interculturais, qual o caminho mais adequado em ordem a construir um povo e uma Europa unida, apesar da diversidade de línguas e de culturas?
Na brevidade destas notas, não irei citar estudos feitos por peritos na matéria, mas somente apontar alguns caminhos simples e viáveis, até porque estamos perante uma invasão de refugiados, diferentes nas suas origens culturais e linguísticas, mas sonhando encontrar a paz e o bem estar pessoal e familiar que lhes tem sido negado.
O esforço a fazer tem de ser recíproco, embora tenha mais obrigação de tomar a iniciativa quem não teve de abandonar a sua terra e família. Um acolhimento fraterno e inteligente, consciente das possibilidades reais, mas com um coração magnânimo, é a primeira atitude que se espera, para não aumentar o sofrimento de quem bate à nossa porta. Lembra-me sempre do que presenciei quando era pequeno, no tempo da carestia dos últimos anos da segunda guerra mundial e seguintes: em que podemos ajudar, ser úteis? E a repartir o pouco que tínhamos com quem nada tinha.
Hoje em dia, com tantos recursos e meios, todos os países da União Europeia poderão facilitar este acolhimento e ajuda. Apesar da diversidade de línguas, há uma que todos entendem, a do coração, do acolhimento franco e fraterno. Mas também há muitos tradutores e intérpretes. Precisamos de quem saiba coordenar esse encontro e entreajuda e não cair na exploração de quem se aproveita da situação, ajudando apenas porque arranjou um emprego pago com recursos estatais.
Muitas instituições e organismos, algumas ligadas à Igreja Católica, criaram uma plataforma para organizar o acolhimento dos refugiados. Aguardamos algumas instruções concretas, para que toda a sociedade civil possa colaborar, criando a mentalidade de acolhimento fraterno e de que isso não é apenas da responsabilidade do governo, mas de todos os cidadãos, conscientes de que devem fazer aos outros aquilo que gostariam que lhes fosse feito, se estivessem nas mesmas circunstâncias. Aqui tem aplicação o princípio da subsidiariedade.
2. A riqueza do encontro intercultural
Na igreja, na catequese, na liturgia, nos grupos, nos movimentos, no trabalho, na escola, no lazer, numa palavra, no encontro entre pessoas há ou deve haver sempre um dar e receber, que enriquece as duas partes. Mesmo quando uma das partes pertence a um grupo social ou culturalmente desfavorecido, quando no encontro se vê a dignidade da pessoa humana, processa-se um enriquecimento em ambas. Isto para não falar da perspetiva evangélica de que no necessitado encontramos o próprio Cristo.
Por isso não podemos difundir ideias de que se trata de uma invasão islâmica através destes fugidos à guerra e à fome. Que haja sempre quem se aproveite das necessidades do próximo é verdade, mas isso não justifica esses procedimentos. Os aproveitadores estão de ambas as partes. Claro que é preciso estar atento e denunciar os aproveitadores e exploradores de ambos os lados.
O melhor para descobrir os mal intencionados é criar um clima de acolhimento e facilitar o encontro no respeito pela diversidade, mas sempre num diálogo intercultural e inter-religioso. Far-nos-ia bem reler a Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa do Concílio Vaticano II, que no dia 7 de Dezembro de 1965 foi promulgada. Além de assim celebrarmos os 50 anos do encerramento do Concílio, refrescaríamos as nossas ideias e deixaríamos de repetir slogans xenófobos, pouco cristãos, ou pelo menos denunciadores do medo que tolhe a vida social.
Infelizmente estamos pouco habituados ao diálogo, pois vivemos de opiniões feitas e individualistas. O verdadeiro diálogo aprende-se em família, fruto do amor e da confiança que deve existir, sempre interessados no bem do outro, que, por sua vez, também quer o nosso bem. Quando este diálogo começa a faltar, aparecem a desconfiança, o receio, o medo e a solidão.
Oxalá o Sínodo dos Bispos sobre a vocação e missão da família na igreja e no mundo contemporâneo ajude a reavivar estes valores essenciais da convivência humana, cuja génese começa no berço. Para que se cumpra a vontade de Deus a seu respeito e não a vontade de quem quer a sua destruição, peço a oração dos diocesanos.
Aproxima-se o dia mundial das missões, depois de termos iniciado o mês de Outubro com a festa de Santa Teresinha, padroeira das Missões. O espírito missionário e o encontro intercultural ajudar-nos-ão a superar a indiferença, que é a pior violência que nos podemos fazer a nós mesmos, à família e à sociedade. Que a necessidade de acolher os refugiados nos ajude a descobrir o grande valor do diálogo, que leva à integração.
† António Vitalino, bispo de Beja
5 de Outubro de 2015
Um povo de profetas
1. Que significa ser povo?
Ao ver os milhares de refugiados, de todas as idades, mas sobretudo jovens, que fogem à fome e à guerra, enfrentando muitos perigos e obstáculos, mas sempre sonhando com um país onde possam realizar os seus sonhos, em paz e liberdade, pergunto-me se com estas pessoas, provenientes de diversos países, se pode formar um povo ou se acaso não está nelas o que falta a muitos países com a mesma língua e história, mas com pessoas acomodadas, egoístas e tristes. Por estes pensamentos já dá para entender que construir um povo não é algo estático e permanente, mas precisa de um dinamismo constante. Parar é morrer, costuma-se dizer e isto também se aplica na constituição da identidade cultural de um povo.
Por isso Jesus adverte aqueles que escandalizam, menosprezam, descartam os seus irmãos, sobretudo as crianças e os indefesos. Seria melhor atar-lhes uma mó ao pescoço e atirá-los ao fundo do mar. Mas são estes que parecem ficar sempre na mó de cima, explorando os pobres e indefesos, como acontece com muitos neste êxodo, atirados ao mar, sem dó nem piedade. Jesus diz-nos que no seu Reino não pode ser assim. Para entrar nele é preciso ser audaz e não ter medo de sacrificar algum dos nossos membros, se eles nos impedem de avançar. E S. Tiago adverte os gananciosos e exploradores, que acumulam tesouros neste mundo, sem escrúpulos, sem consciência dos valores e da dignidade da pessoa humana, esses apodrecerão com o seu vil metal e serão excluídos do Reino e do Povo de Deus.
Os discípulos de Jesus, os apóstolos e seus continuadores, são enviados a anunciar a boa nova e a curar as enfermidades. E são muitas de que precisamos de ser curados. Mas é preciso que os doentes aceitem ser curados e acreditem na boa nova, consubstanciada na paz com que os apóstolos devem saudar as pessoas. Assim começa a evangelização, o anúncio e a iniciação cristã, que nos ajuda a construir o povo de Deus e a ser membros dignos desse povo. Ir ao encontro das pessoas, com alegria e coração aberto e fraterno, assim acontece a missão da Igreja, até que todos vivam unidos e atentos uns aos outros, de modo que ninguém se sinta excluído, descartado e sofrendo necessidade. Vede como eles se amam,dizia-se dos primeiros cristãos e o seu número crescia de dia para dia.
Será que isto acontece hoje em dia, entre nós e noutras partes do mundo? Onde isso acontece as comunidades crescem e adquirem identidade. Chamados e enviados em missão, temos de perguntar-nos em que falhamos, pois as nossas comunidades estão cada vez mais reduzidas e envelhecidas. Temos uma grande oportunidade de rejuvenescermos, criando um ambiente de acolhimento aos refugiados que batem à porta da Europa, que necessita tanto deles como eles da Europa.
2. Oxalá todos fossem profetas
Moisés, perante as acusações invejosas de Josué, que detetou duas pessoas a profetizar, sem pertencerem ao grupo dos escolhidos, respondeu:oxalá todo o povo fosse profeta (Num. 11, 29). E Jesus também diz algo parecido, quando lhe vieram dizer que havia alguém a fazer milagres apesar de não pertencer ao número dos seus discípulos. Quem não é contra nós é por nós (Mc 9, 40).
Os mensageiros de Jesus que anunciam a boa nova são profetas, não no sentido de predizerem o futuro, mas de falarem em nome de Deus, que ama os seus filhos e quer que todos se salvem. Essa é a grande profecia que o mundo precisa de ouvir e sentir. Mas tem de ser testemunhada pela autenticidade de vida dos mensageiros. A Igreja tem de ser um povo de profetas da alegria, da esperança, da paz, do amor.
Estamos a viver um ano da vida consagrada. No anúncio deste ano o Papa Francisco disse que os consagrados são profetas da alegria. Isto pode ser dito de todos os cristãos, mas com maior força dos que foram chamados a seguir Jesus de perto, imitando na visibilidade da sua vida o estilo de vida de Jesus. É este radicalismo profético que constrói a Igreja, o povo de Deus.
Vamos viver um ano jubilar da misericórdia, que nos recorda que sem esse amor misericordioso de Deus a Igreja não subsiste e a sua missão torna-se inútil, museu, estrutura sem alma, sem coração, condenada a morrer e desaparecer. Temos uma grande oportunidade de conversão, de mudança das nossas mentalidades, pedagogias e métodos de evangelização.
Este coração e espírito misericordioso dar-nos-á uma nova linguagem e capacidade de tocar outros corações, fazendo-lhes sentir quanto Deus os ama e criou para amar e assim serem alegres e felizes, porque fazem outros felizes. Felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia e conhecerão a Deus, a fonte da misericórdia, assim lemos nas bem-aventuranças proclamadas por Jesus. Assim queremos nós viver este último ano do Sínodo diocesano e também o último ano do meu ministério episcopal à frente desta diocese.
Durante ele teremos a visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima e no final iremos nós como peregrinos até Fátima, para depositarmos aos seus pés as conclusões e propósitos do nosso Sínodo, para dela ouvirmos uma vez mais o apelo feito nas bodas de Caná: fazei tudo o que Ele, o Seu Filho Jesus, vos disser. E com ela aprendamos a ouvir a Palavra de Deus e a ponhamos em prática, tendo-a sempre como mãe que nos acompanha e intercede por nós e a nossa diocese.
† António Vitalino, bispo de Beja
28 SET 2015
Recomeçar ou começar de novo?
1. Início de novo ano pastoral
O mês de setembro é, no hemisfério norte, o período do ano em que tudo recomeça, após um tempo de férias ou de ritmo mais vagaroso. Mas será um recomeço ou um começar de novo? Escola, emprego, vida familiar, desporto, etc. Para muitos é um novo começo, sobretudo para quem inicia um novo curso ou mudou de residência ou de emprego. Mas para outros é voltar ao habitual. Há anos em que tudo parece arrastar-se, uma rotina continuada. Quando assim acontece, trata-se de um recomeço, cuja continuação não terá um bom final, pois neste caso não crescemos como pessoas, não nos enriquecemos e empobrecemos o nosso meio. Nem sequer a produtividade no trabalho aumentará.
Se isto acontece na missão eclesial, no início do que chamamos novo ano pastoral, então retrocedemos e arrastamos nessa morte lenta as nossas comunidades. É um envelhecimento precoce e morte certa. Na vida e missão da Igreja é necessário ardor, entusiasmo, alegria, nova linguagem nas relações com Deus, com as comunidades e o meio ambiente. Os responsáveis das comunidades, a começar pelos bispos, os presbíteros, os diáconos, os consagrados e consagradas, os coordenadores de movimentos e serviços precisam de olear bem os músculos e os carris, para puxarem aqueles que perderam o ritmo no tempo de férias.
Este ano, muito clero de Portugal juntou-se em Fátima nos finais de Agosto, a participar num Simpósio, que desenvolveu o tema do Padre, como irmão e pastor,que me fez lembrar a famosa frase do sermão 46 de Santo Agostinho sobre os pastores, que aparece no Ofício de Leituras destas semanas: convosco sou cristão e para vós sou bispo.
Depois, nos primeiros dias de Setembro, os bispos portugueses foram todos a Roma em visita ad limina, para avaliarem colegialmente entre si, com o Papa e seus colaboradores a missão que lhes está confiada. Foi um encontro muito variado, com momentos fortes de oração e celebração em locais significativos de Roma, sobretudo nas quatro basílicas maiores e na igreja de Santo António dos Portugueses. Houve um diálogo com pessoas de grande experiência e visão mundial e com responsabilidade na vida da Igreja. Por isso regressámos bem oleados para ajudar a nossa Igreja em Portugal a renovar-se e ganhar novo ritmo.
Na diocese de Beja estamos a apresentar os novos párocos nas paróquias onde houve transferências, a realizar vários encontros de lançamento do novo ano pastoral e, no próximo sábado, dia 26 de Setembro, celebraremos o Dia Diocesano, que marca o arranque definitivo da missão na igreja de Beja no ano de 2015-2016, que será o último ano do Sínodo e que vai encerrar na grande peregrinação a Fátima a 25 e 26 de Junho de2016.
Espero que este seja um ano dum novo começo e de passagem e transmissão do testemunho da fé e da missão na Igreja de Beja.
2. Áreas em que é preciso um novo começo
Embora deva continuar aquilo que está bem, no entanto há muitas áreas na pastoral diocesana em que é preciso iniciar ou mudar de rumo, a começar pelos próprios pastores. Limito-me a mencionar a pedagogia da misericórdia, que deve transparecer em toda a nossa missão. Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso, diz Jesus no Evangelho (Lc 6, 36) e que o Papa Francisco quis realçar com a proclamação do ano santo da misericórdia. Este vai também ser o lema do nosso ano pastoral e do último ano do Sínodo diocesano. Se em todas as nossas atitudes e atividades transparecer a misericórdia do Bom Pastor, a nossa diocese dará um forte contributo para a renovação da sociedade.
Uma outra área em que é preciso começar de novo é a pastoral familiar, a partir da preparação remota do matrimónio e do acompanhamento espiritual e humano das famílias. No respeito pela liberdade das pessoas, temos que ir ao seu encontro, escutá-las, interrogá-las e caminhar com elas, num diálogo interessado no seu bem, sem qualquer interesse de ordem material. A indiferença e o individualismo reinantes precisa de ser superado pela pastoral do encontro, do interesse pelo bem das pessoas, do diálogo com todas as gerações, como escreve o Papa Francisco no discurso que entregou aos bispos portugueses no final do encontro que tiveram com ele. Os casais e as famílias necessitam deste acompanhamento interessado e dialogante. O encontro mundial das famílias em Filadélfia, que acontece esta semana e o próximo Sínodo dos Bispos em outubro nos sirvam de inspiração e estímulo para a nossa missão em prol da família.
Sem poder mencionar todas as áreas em que precisamos de um novo início, penso que a pastoral juvenil necessita de um impulso criativo. Em vez de tentarmos impor o vestido da primeira comunhão, para usar uma imagem do Papa Francisco no discurso mencionado, alimentemos a esperança e o sonho dos nossos jovens, sobretudo dos que estão desempregados.
A pedagogia de Jesus, seguida por S. João Bosco, pode ajudar-nos neste campo: estar com os jovens, em vez de lhes pregar sermões, deixar que sejam protagonistas na prática do bem, apontar-lhes horizontes vastos e desafiantes de missão. Demos-lhes espaço nas nossas comunidades. Ao vermos as imagens dos jovens refugiados, que enfrentam a morte para realizar os seus sonhos, que os seus países de origem não lhes possibilitam, acordemos do sono e da preguiça do bem-estar, que nos impede de ser criativos de um mundo melhor, mais fraterno e solidário.
† António Vitalino, bispo de Beja,
21SET2015
Impressões da Visita ad limina
1. Alguns pontos do programa
De 5 a 12 de setembro os bispos portugueses estiveram em Roma, convocados pelo Papa Francisco para realizar a visita periódica ao túmulo dos apóstolos Pedro e Paulo e ao sucessor de Pedro, designada em latim por visita ad limina Apostolorum, a fim de aprofundar a comunhão fraterna e colegial com ele e entre si. O diretório dos bispos diz que esta visita se deve realizar, se possível, de cinco em cinco anos. Mas, com o aumento do número de bispos no mundo, devido à criação de novas dioceses e a longevidade crescente, a periodicidade tem vindo a dilatar-se.
Nesta visita há muitos momentos de oração, de diálogo com o Papa e seus colaboradores nas várias congregações, conselhos pontifícios e comissões, com um programa muito preenchido e cansativo, sobretudo para os presidentes das comissões episcopais, que têm de fazer uma apresentação e breve relatório sobre a situação da Igreja em Portugal no respectivo setor, para além dos relatórios enviados cerca de meio ano antes por cada bispo acerca da sua diocese e serviço.
O primeiro dia foi de convívio e viagem de estudo da história do papado, sobretudo em relação aos anos que precederam o assim denominado exílio de Avinhão. Fomos a Anagni, uma terra a sul de Roma, onde residiram alguns papas, sendo o mais conhecido Bonifácio VIII, o último a defender a primazia do poder espiritual e temporal do papado contra as pretensões absolutistas dos imperadores da Alemanha e da França.
Visitar a catedral de Anagni, da sua cripta, a que podemos chamar a primeira Capela Sistina, assim como o palácio de Bonifácio VIII, foi refrescar a memória dum período importante da história da Igreja. O almoço em Fumoni, onde o Papa S. Celestino V passou os últimos meses de vida após a sua resignação, em 1294, a última antes de Bento XVI, projetou-nos para épocas históricas muito distantes no tempo e na mentalidade, mas com alguns acontecimentos similares, embora com causas e interpretações diferentes.
No dia 7, às 7,30 horas da manhã já nos encontrávamos a celebrar a Eucaristia com Laudes na cripta dos Papas, diante do túmulo de S. Pedro, para, logo a seguir, o primeiro grupo, de que fiz parte, se encontrar com o Papa Francisco na biblioteca pontifícia. Depois da saudação e apresentação pessoal de cada bispo, começou um diálogo ameno e profundo dos bispos com o Papa, sobre as mais variadas questões, como a catequese e iniciação cristã, o problema dos imigrantes, etc.
Sem entrar em pormenores, notou-se a mudança em curso, do centralismo de Roma para a corresponsabilização dos bispos nas suas dioceses e países, embora sempre em comunhão colegial entre si e com o Papa, sucessor de Pedro.
Notou-se também o início do ano nos serviços da Cúria romana, após um período de férias. O verão em Roma é quente e húmido. Por isso muitos saem de lá e vão de férias. Também os Papas anteriores costumavam sair para as montanhas e para Castelgandolfo, nas imediações de Roma, uma colina alta, de clima ameno. O Papa Francisco tem ficado no Vaticano, com pena dos comerciantes desses locais de férias, que têm perdido muitos clientes e parecemdescontentes com esta situação.
2. Mudanças de estilo
Sendo esta a minha terceira visita, depois de 1999 com S. João Paulo II e 2007 com Bento XVI, pareceu-me ter sido a melhor e com maior participação de bispos eméritos, praticamente todos, como também ouvi dizer a outros colegas. Talvez a popularidade do Papa Francisco tenha sido um chamariz.
Notei que o Papa e os seus colaboradores mostram um grande apreço pela co-responsabilidade dos bispos nas suas respectivas dioceses e países, estando a esvaziar o centralismo de Roma. Sinal disso foi a promulgação, durante a nossa visita, do Motu próprio Mitis iudex (juiz misericordioso) sobre os processos de nulidade do matrimónio. Os bispos de cada país, em princípio, conhecem melhor a sua realidade cultural e eclesial e poderão discernir com maior proximidade e justeza a verdade do compromisso matrimonial, mantendo o princípio da indissolubilidade do matrimónio cristão. O mesmo acontece noutras áreas, sem negar a ortodoxia da fé cristã.
Um outro benefício deste encontro com o Papa e os seus serviços é proporcionar aos bispos mais tempo para estarem juntos, para rezar, refletir e dialogar sobre o seu ministério, com suas alegrias e dificuldades, daí resultando um aprofundamento da sua comunhão e compreensão mútua. Jesus enviou os apóstolos dois a dois, em missão. A comunidade é sempre importante e benéfica para o exercício da vida apostólica. Embora nos reunamos várias vezes por ano, em assembleias plenárias, retiro, jornadas e comissões, no entanto, longe dos nossos ambientes de residência e de trabalho, embora tendo sempre presentes os afazeres do nosso ministério, enquanto a mente descansa, o coração aquece, para assumir com novo entusiasmo, novo ardor e linguagens mais adequadas a missão evangelizadora.
Desta vez a Visita ad limina aconteceu no início do ano pastoral. Na diocese de Beja preparamo-nos para viver o último ano do sínodo, também ano jubilar da misericórdia, da visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, em preparação do primeiro centenário das aparições, à qual quero consagrar o meu último ano à frente desta diocese.
† António Vitalino, bispo de Beja
15/SET/2015
Férias e Festas
1. As férias são necessárias?
Começar esta última nota antes da interrupção do mês de agosto com uma interrogação sobre a necessidade das férias é arriscar não ser lido e deixar uma má impressão nos amigos e colaboradores, pois elas fazem parte dos direitos do trabalhador, direitos sagrados conquistados à custa de muitas lutas e sofrimentos. As férias, os dias de descanso e o número de horas laborais por semana são direitos adquiridos e espero que a economia de mercado não prevaleça sobre a dignidade da pessoa humana, fazendo desta uma máquina de trabalho e um instrumento de lucro. Já Jesus reconheceu e recomendou essa necessidade aos discípulos (cf. Mc 6, 20-44 e Mt 11,28).
Mas como vivemos as nossas merecidas férias? Será necessário sair de casa e da terra onde habitamos todo o ano para ter férias? Será que o facto de viajarmos para outras terras e aí passarmos uns dias nos descansa mesmo? Além disso, muitos nem sequer usam os dias de descanso semanais para repousar do ritmo acelerado em que vivem. O tráfico nas estradas mantém-se intenso, embora não em direção aos locais de trabalho, como nos outros dias.
No inverno, para os grandes centros comerciais e no verão e dias de sol, até às praias. Será que isso nos descansa mesmo ou aumenta em nós o stress? Em alguns países do centro da Europa os sábados de tarde e os domingos são mesmo para descansar e dedicar-se à família, pois os comércios fecham. Nisto, sindicatos e igrejas estão de acordo. As famílias dedicam esses tempos de repouso às lides da casa, ao descanso, às caminhadas nas imediações da aldeia e ao diálogo entre os seus membros, muitas vezes também ao grupo religioso a que se pertence, com momentos de formação e oração comunitária.
Por vezes, ouve-se dizer que muitas pessoas chegam cansadas das férias e precisam de descansar delas. Neste caso, não foram aquilo que significam, liberdade de horários de trabalho, descanso, dedicação àquilo que não nos cansa, aos amigos e familiares com quem gostamos de estar, à leitura e cultivo dos valores do espírito. Afinal, todos podem e precisam de ter férias, a não ser aqueles que sofrem de doença, de miséria ou de abandono por não terem verdadeiros amigos e família. E quem não descobriu e experimentou o amor que vem de Deus, em quem pode repousar, esse continua inquieto, insatisfeito, sempre à procura e a correr de lado para lado, para fora de si, sem descanso.
Espero que isto não se passe connosco e por isso desejo a todos belos dias de descanso, de repouso e de aprofundamento das relações essenciais da vida humana com as pessoas que fazem parte do nosso dia a dia e com o Senhor da vida, no respeito pela beleza da natureza, com tempo para a admirar e contemplar. Boas e repousantes férias para todos.
2. Festas populares no tempo de férias
Em muitas terras com emigrantes o tempo de férias traz vida e movimento aos dias adormecidos ao longo do ano, sobretudo nas aldeias do interior, desertificadas e envelhecidas. As comissões de festas procuram associar o convívio e as devoções tradicionais da terra, mesmo que tenham de trasladar para essa altura a comemoração dos padroeiros, misturando o profano e o religioso, pelo menos nos seus cartazes publicitários, numa simbiose em que, por vezes, os atos de culto apenas aparecem no título da festa e na imagem da santinha, como se diz no Alentejo.
Nem sempre as comissões se constituem com o conhecimento da paróquia, nem os programas se combinam de acordo com os responsáveis da comunidade eclesial. Por isso não podemos chamar a isso de festas religiosas, mas simplesmente de festas populares, em que as paróquias realizam alguns atos de culto, que fazem parte dos acontecimentos festivos, mas não são a festa.
Escrevo isto porque, por vezes, se exagera no programa das festas, nos gastos avultados, sobretudo em arruados, artistas convidados e fogo de artifício. O culto dos exibicionismos, das disputas entre comissões e das vaidades, que muitas vezes acaba em zangas e arruaças, não é muito próprio de uma festa popular nem muito menos religiosa. As festas devem promover o convívio, a alegria entre a população, residentes e visitantes e, se religiosas, também a devoção e o fortalecimento da fé das pessoas.
Também não posso deixar de advertir as comissões de festas ligadas à igreja, aos conselhos económicos paroquiais e às irmandades para terem cuidado com a legalidade fiscal, não favorecendo a fuga aos impostos sobretudo no pagamento aos artistas. E se os lucros económicos da festa não se destinarem ao culto ou a outras finalidades da ação da igreja, também devem submeter-se às normas contributivas em vigor.
Festas, sim, mas para promover, na simplicidade, o convívio, a alegria e a devoção, no respeito pelas leis em vigor. Assim vale a pena festejar e cansar-se, pois nada poderá pagar o lucro social e religioso daí resultante. Boas férias e boas festas são os meus votos.
† António Vitalino, bispo de Beja
28JUL2015
Ecologia dos afetos
1. A educação dos afetos
Há pessoas muito racionais e frias nas suas relações com os outros, mas que ficam melindradas quando alguém lhes toca no seu amor próprio, põe em causa o seu discurso ou a sua opinião, mostrando que não se aplica na situação presente. Isto deve fazer-nos pensar sobre como educamos a nossa personalidade. A exaltação da racionalidade sem ter em conta outros aspetos da vida do ser humano, sobretudo as suas relações com outros e com o ambiente, não pode ser considerada uma educação boa, integral, à qual se refere, por várias vezes, a recente encíclica do Papa Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum.
No exercício das nossas relações com os outros, com a natureza e com Deus, precisamos de envolver todas as capacidades de que estamos dotados, corpo, sentidos, vontade, inteligência e respeitá-las também nos outros. Os demagogos que usam apenas a palavra, os argumentos racionais, sem implicação das suas pessoas, sem coerência de vida, sem sensibilidade e afeto para com os outros, depressa caem na desgraça dos seus ouvintes e deixam de ser escutados.
Mas como e onde podemos desenvolver estas múltiplas capacidades de que estamos dotados? Nesta breve nota irei apenas falar de uma, mas que envolve todas as outras: a educação para os afetos, para a gratuidade, a solidariedade, a atenção aos outros, para o amor. Antes de aprender a falar, já a criança aprende a sentir e expressar o seu afeto, no berço, ao colo, na família.
Na sua recente viagem a três países da América Latina, na homilia do dia 6, no Equador, o Papa Francisco repetia um pensamento de que já falou muitas vezes. Na família, diz o Papa citando a sua encíclica Louvado sejas (nº 213) «aprende-se a pedir licença sem servilismo, a dizer “obrigado” como expressão duma sentida avaliação das coisas que recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância; lá se aprende também a pedir desculpa quando fazemos algo de mal, quando nos ofendemos. Porque, em toda a família, há ofensas. O problema é depois pedir perdão. Estes pequenos gestos de sincera cortesia ajudam a construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia». A família é o hospital mais próximo, quando uma pessoa está doente cuidam-na lá enquanto se pode. A família é a primeira escola das crianças, é o grupo de referência imprescindível para os jovens, é o melhor asilo para os idosos. A família constitui a grande «riqueza social», que outras instituições não podem substituir, devendo ser ajudada e reforçada para não perder jamais o justo sentido dos serviços que a sociedade presta aos seus cidadãos. Com efeito, estes serviços que a sociedade presta aos cidadãos não são uma espécie de esmola, mas uma verdadeira «dívida social» para com a instituição familiar, que é a base e que tanto contribui para o bem comum de todos.
A seguir o Papa pede oração pela família e pelo próximo Sínodo dos Bispos, que vai vai tratar da vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. Já foi publicado o instrumento de trabalho, que teve em conta as propostas do sínodo extraordinário sobre o mesmo tema, em outubro de 2014, enriquecido com as sugestões enviadas de todo o mundo, em ordem a curar as feridas de tantos lares. Sem a experiência da família, dificilmente conseguiremos esta educação dos afetos.
2. A família, experiência de vida plena
Muita coisa se poderá dizer e escrever acerca da família, constituída a partir do amor de um homem e uma mulher, amor que dá fruto e se projeta nos filhos e que, para os crentes, se orienta para a sua fonte, Deus criador e salvador, que se manifestou na pessoa e mensagem de Jesus Cristo. Sem esta orientação e projeção o amor humano facilmente se converte em egoísmo refinado.
Como sabemos pelo Evangelho, Jesus não veio para apenas apontar a vontade de Deus a respeito da criação, mas para salvar e curar as feridas da humanidade (Jo 3, 17). Por isso respondeu aos acusadores da mulher adúltera, que queriam que ele aplicasse a lei, pronunciando a sentença de morte, com a observação: quem não tem pecado que atire a primeira pedra. E à mulher, que ficou sozinha, diz: também eu não te condeno. Vai e não voltes a pecar (Jo 8, 1 ss). É esta ternura e perdão de Deus que deve orientar a pastoral da Igreja, mas que também a família a deve viver, para ajudar os seus membros a fazer a experiência de vida plena, apesar das muitas fragilidades a que estão sujeitos.
A ternura nos relacionamentos familiares é a virtude quotidiana que ajuda a superar os conflitos interiores e relacionais, lemos no Documento de preparação para o Sínodo dos Bispos sobre a família, nº 70, e que se vai realizar no próximo mês de outubro. A família é o património fundamental da humanidade e da Igreja, mas está muito fragilizada e desapoiada. Mas ela é a primeira e principal escola da aprendizagem da vida, na diversidade das suas dimensões e relações.
Não admira que a Igreja sempre tem voltado as suas atenções para ela e agora o Papa Francisco nos pede para intensificarmos a pastoral das comunidades cristãs, para ajudarmos a que ela possa tornar-se cada vez mais aquilo que é chamada a ser: escola de ternura, da gratuidade, da solidariedade, de amor, de atenção aos outros, de superação do egoísmo individualista, de evangelização e de transmissão dos valores humanos e da fé.
† António Vitalino, bispo de Beja
14/JUL/2015
Espiritualidade ecológica
1. Ecologia integral
A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem,lemos na encíclica Louvado sejas (n. 138). O ser humano, dotado de capacidades reflexivas, deve pensar e orientar a sua vida, corpo e espírito, em todas as relações, sem excluir nenhuma. Nos capítulos IV e V da encíclica o Papa Francisco menciona e descreve todas essas relações, mostrando a sua importância para a realização plena e harmónica do ser humano.
A ecologia ambiental, económica e social estão interligadas. Nenhuma pode ser excluída em benefício de alguma delas. A exclusão de alguma dessas relações ou de algum membro da nossa sociedade é um empobrecimento da realidade e tem repercussões no bem integral do todo. Por isso, como seres dotados de inteligência, criados à imagem e semelhança de Deus, foi-nos confiado o cuidado de toda a criação. O nosso próprio bem depende do todo que nos envolve.
O desenvolvimento económico, desligado de todos os outros aspectos, procura apenas o maior lucro, o mercado, sem ter em conta o desenvolvimento humano e social e sem preservar o ambiente. A técnica ao serviço da economia causa muitos estragos ao ambiente e lança muita gente para o desemprego. Como já foi dito nestas considerações sobre esta encíclica, o trabalho faz parte da realização da dignidade humana. Um desenvolvimento sem consideração da dignidade da pessoa torna-se desumano. É preciso saber colocar a técnica ao serviço da pessoa e não ao contrário.
Já D. José do Patrocínio Dias, o bispo soldado de Beja, dizia que uma máquina ceifeira tirava o trabalho a 40 pessoas. O que se fez delas? Muitas ficavam nas praças das aldeias à espera que alguém as contratasse. Outras emigraram. E assim começou a desertificação do Alentejo.
Hoje, muitas aldeias estão desertas ou apenas habitadas por idosos. Como rejuvenescer a nossa sociedade? Esta encíclica põe a descoberto muitos dos erros do nosso desenvolvimento desumano. Sem apresentar soluções, pois não é essa a missão da Igreja, no entanto alerta os nossos políticos e empresários a não pensarem apenas no progresso económico e financeiro, depredando e degradando os nossos ecossistemas e tratando muitos seres humanos como descartáveis, lançando-os para as bermas do desenvolvimento tecnológico. A cultura e a justiça intergeracional também devem ser respeitadas.
No capítulo V o Papa apresenta algumas linhas de orientação e ação, como o diálogo sobre o meio ambiente na política internacional, pensando o mundo como a casa comum de todos. Os acordos internacionais precisam de ser levados à prática, tendo em conta os países mais pobres. É preciso por a politica e a economia ao serviço da vida humana e ter em conta o património das religiões no diálogo com as ciências.
2. Uma educação e espiritualidade ecológicas
O sexto e último capítulo da encíclica aponta alguns elementos e perspectivas para uma educação e espiritualidade ecológicas. Já Aristóteles considerava a admiração como o princípio da filosofia. Faz parte da inteligência humana procurar as últimas causas, os fundamentos de toda a realidade e acontecimentos. Ora essa busca começa pela capacidade de nos admirarmos perante aquilo que nos rodeia e acontece.
Hoje em dia perguntamos mais sobre a utilidade das coisas. Para que servem? Mas este modo de conhecimento não é o mais característico da nossa inteligência. Os seres e os acontecimentos têm a sua beleza e existência própria. Admirá-los, conhecê-los e apreciá-los naquilo que são e não por causa da sua utilidade em relação ao nosso próprio bem estar, pressupõe uma atitude no uso da inteligência e dos afectos que exigem uma educação e uma espiritualidade da nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo. A educação filosófica, estética e espiritual tocam o âmago do ser humano. Infelizmente banimos o cultivo destas atitudes dos nossos sistemas educativos. Deixamos tudo isso às opções de alguns. Os resultados catastróficos estão à vista.
O Evangelho chama muitas vezes a atenção para isso.Olhai os lírios do campo, as aves do céu... A gratuidade do amor de uma mãe, o perdão e o amor aos inimigos, as bem-aventuranças e muitos outros apelos na vida de Jesus, dos santos e dos artistas não são da ordem da utilidade, do consumo, mas da beleza do outro para além de nós. O desprendimento dos bens materiais pelo voto de pobreza dos consagrados também é um forte testemunho no modo de considerar as coisas. Os próprios sacramentos, sinais eficazes do amor de Deus por nós, elevam a matéria, água, pão, vinho, óleo à dignidade da transmissão da vida divina ao ser humano.
Os místicos e os santos, assim como muitos artistas, interpelam-nos para a consideração da beleza da criação. O Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, Louvado sejas, Senhor, que deu o título a esta magna carta do Papa, é uma amostra de como precisamos de nos converter no modo de considerar e lidar com os bens da criação.
Deus Omnipotente, que estais presente em todo o Universo e na mais pequenina das vossas criaturas, Vós que envolveis com a vossa ternura tudo o que existe, derramai em nós a força do vosso amor para cuidarmos da vida e da beleza (n. 246).
† António Vitalino, bispo de Beja
07Julho2015
Cuidadores mandatados
1. Visão bíblica sobre o homem e o mundo
O Papa Francisco ao escrever uma encíclica sobre a ecologia não ultrapassou as suas competências ou quebrou as raízes da visão bíblica sobre o homem e a criação, abordando um tema da moda de alguns pensadores, tomando posição contra quem defende uma economia de mercado e um desenvolvimento ilimitado, sempre crescente, sem preocupação com o ambiente. Bem pelo contrário. Alguns querem empurrar a Igreja e os cristãos para a sacristia, para uma expressão da fé privada, fora do espaço público. A Bíblia não é um livro de ciência moderna, mas não deixa de ser uma leitura inspirada pelo Espírito Santo da vida do ser humano situado no planeta terra, lendo os acontecimentos da sua história na perspetiva da sua orientação para Deus.
A isto se refere o Papa no nº 63: Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade.
Por isso o Papa aponta, logo no segundo capítulo da encíclica, a visão bíblica do homem e do mundo, encontrando aí os fundamentos de uma ecologia integral, ou seja, do ser humano considerado em todas as suas dimensões e relações: consigo próprio, com o ambiente, com os seus semelhantes e com Deus. Desde o primeiro capítulo do livro do Génesis até ao último versículo do Apocalipse encontramos os fundamentos de uma atitude de respeito, de admiração, de gratidão e de amor do ser humano para com todos os outros seres. Ninguém deve viver para si mesmo. Viver para os outros implica cuidar e guardar tudo e todos os que nos rodeiam. Quer vivamos quer morramos devemos viver para o Senhor, confessa S. Paulo na carta aos Romanos (14, 7 ss). Um coração que ama nunca é indiferente a qualquer ser, seja humano ou de outra espécie (nº 91 s).
Neste capítulo o Papa dirige-se sobretudo aos cristãos, afirmando que é importante conhecerem as raízes da sua fé, para poderem dar o seu contributo para a presente crise ecológica que o mundo atravessa. Quem está empenhado na dignidade da pessoa humana e na procura da viabilidade de um desenvolvimento justo e para todos encontra na fé cristã as razões profundas para tal compromisso (nº 65).
A liberdade da pessoa não é absoluta. Realiza-se na relação harmoniosa com os outros seres e no respeito da sua dignidade, não lhe conferindo o direito de os usar como objetos ou escravos dos seus desejos egoístas e relativistas. A doutrina social da Igreja, de que tratei em notas anteriores, ajuda-nos a realizar esta relação harmoniosa com toda a criação.
2. A raiz humana da crise ecológica
No terceiro capítulo da encíclica o Papa fala das maravilhas da ciência e da técnica, mas que dão um tal poder ao homem que pode tornar-se escravo delas e envolver nessa escravidão toda a criação, truncando as relações essenciais e a hierarquia dos seres criados e dos valores da vida humana. Há um modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar (nº 101).
Todos nos recordamos das tragédias do século XX, em que todos os recursos da técnica foram usados para destruir o inimigo. Fizeram-se tratados para que isso não se repetisse, mas, de vez em quando, alguém põe de parte esses acordos e, no desespero de não conseguir impor a sua vontade e não tendo outros valores senão o poder, lança mãos dessas armas. O conhecimento e a técnica são usados para fazer valer projetos egoístas, destruindo e escravizando os pobres e os seus ambientes. O ser humano não foi educado para o reto uso do poder. O desenvolvimento científico e tecnológico precisa de ser acompanhado de uma sólida educação para os valores e a ética.
E qual é a base e o fundamento dessa ética, que orienta a liberdade dos poderosos para o reto uso dos meios ao seu alcance? Estamos todos de acordo em criar comissões éticas nas instituições mais sensíveis da sociedade, onde se lida com a vida e a morte, mas também todos conhecemos as decisões polémicas em muitos casos, para além da representatividade na constituição dessas comissões. O conhecimento técnico habituou-nos a tratar tudo como objetos manipuláveis e não como seres com a sua dignidade própria, que merece ser respeitada e tida em conta.
A economia, as finanças e até muitos políticos avaliam os seus procedimentos em função do mercado, do lucro, das audiências e dos votos, o que falsifica a vida e os valores. Um desenvolvimento que põe de parte a pessoa e o trabalho humanos não é moral. A vida consagrada dos monges, de um S. Francisco de Assis e de muitos outros através da história mostra-nos o valor do trabalho humano e ajuda-nos a compreender a beleza e a finalidade de toda a criação. A Igreja e esta encíclica do Papa Francisco também são um apelo profético, para que não embarquemos todos na voragem de um desenvolvimento sem limites.
Todos queremos viver melhor, com mais recursos, com mais saúde, por mais anos, mas não pode ser a qualquer custo, nem muito menos empurrando muitos para a pobreza e a miséria. O todo é superior à parte e a realidade à ideia, são princípios que o Papa repete, para nos ajudar a refletir e decidir. O homem não é senhor absoluto da criação, mas deve ser administrador responsável dos bens, pondo-os ao serviço do bem comum. Ainda estamos a tempo de corrigir desvios.
† António Vitalino, bispo de Beja
30Junho2015
Ecologia integral
1. Cuidar do mundo e dos outros
No dia da sua entrada solene como sucessor do apóstolo Pedro, a 19 de Março de 2013, o Papa Francisco convidava-nos a guardar Cristo nas nossas vidas, para guardar os outros, para guardar a criação, à semelhança de S. José. Isto significa ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos, aprendendo a descobrir nele a beleza de uma irmã e a ternura de uma mãe, como se exprimia S. Francisco de Assis. Não admira que dedique agora uma encíclica a este tema, com o título do conhecido cântico do Santo de Assis, Louvado sejas.
Há muito anunciada e esperada, tornou-se pública no dia 18 de Junho, convidando os cristãos e todos os homens de boa vontade a cuidar da casa comum, que não é apenas a natureza, mas todas as relações da pessoa humana consigo, com os outros e com Deus, o Criador de tudo e de todos.
A isto o Papa apelida de ecologia integral. Quando falha uma das relações, tudo e todos sofrem, pois estamos a amputar os seres existentes de alguns dos seus membros, sejam eles a terra, o ambiente, os animais, ou o ser humano.
A relação com o transcendente, Deus criador, sem o qual a vida não tem sentido, é importante. Sem ela, cada pessoa torna-se a norma de tudo, passando a viver para si e a partir de si mesma, desligada dos outros seres, sem o compromisso de cuidar e guardar o mundo, na sua biodiversidade, para que as gerações futuras o encontrem melhor e mais belo do que o encontramos nós.
Esta encíclica, mesmo abordando temas difíceis, lê-se com fluidez, como nos habituou o Papa Francisco. Sendo um longo escrito, com seis capítulos, a sua leitura não cansa e, caso as ocupações o permitam, lê-se dum fôlego. Começa por apresentar alguns dados da crise ecológica que estamos a viver, para, no capítulo segundo, desenvolver os princípios da tradição judaico-cristã e no terceiro capítulo procurar as causas profundas da situação atual no ser humano.
Depois passa às propostas de uma ecologia que integre o homem no seu lugar específico no mundo e às ações e atitudes que cada um pode fazer suas e assim inspirar também a política internacional. No sexto e último capítulo desenvolve algumas pistas de uma educação e espiritualidade ecológicas, apontando mesmo a necessidade de uma conversão ecológica.
Atendendo à urgência do tema e para ajudar a quem não dispõe do tempo necessário para ler esta magna carta do Papa sem interrupção, vou apresentá-la, na brevidade destas notas, capítulo por capítulo, começando já pelo primeiro.
2. Fizemos da nossa casa uma lixeira
No primeiro capítulo da encíclica o Papa faz um diagnóstico do nosso ambiente, alertando a todos para a necessidade urgente de mudar de paradigma de vida e de comportamento dos humanos, que são a causa principal da crise ecológica.
O Papa começa por afirmar que a mudança é necessária, mas o ritmo a que acontece não é o da lenta evolução biológica e nem sempre orientada para o bem comum e no sentido de um desenvolvimento humano integral e sustentável. Passa logo para a poluição dos ambientes, os resíduos e a cultura do descarte, que afeta sobretudo os pobres, que não têm meios para se defender das consequências perniciosas da evolução tecnocrática, muito dependente de energias fósseis e produtora de imensos resíduos.
O clima é um bem comum, cuja sanidade depende de muitos fatores. O aquecimento global, a devastação de florestas, a destruição dos ecossistemas, o degelo dos glaciares, a subida do nível dos oceanos estão a provocar grandes catástrofes, de consequências gravíssimas para a saúde e a sobrevivência das futuras gerações, sendo os mais pobres, pessoas e países em vias de desenvolvimento os mais afetados, presentemente e nas próximas décadas. O fenómeno das migrações de pessoas e espécies vai agravar-se ainda mais.
Um dos graves problemas atuais é a questão da água potável, um bem essencial para a vida das pessoas, que, com a privatização das suas fontes começa a sujeitar-se às leis do mercado. Este é um problema que nas políticas públicas de privatizações deve ser tido em conta. Não podemos comparar a água potável e outros recursos essenciais para a subsistência da humanidade a outros bens, importantes, mas não imprescindíveis para a vida de todos.
O Papa afirma: o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos (nº 30). Negar aos pobres o acesso à água potável é negar-lhes o direito à vida, radicado na sua dignidade inalienável. Há quem afirme que isto será uma das grandes fontes de conflitos no mundo.
Outro tema é a preservação da biodiversidade, posta em causa com a destruição de ecossistemas importantes para certas espécies de vida, cuja beleza as gerações futuras não poderão contemplar e necessárias para o equilíbrio das energias do planeta.
Com a desertificação demográfica do interior e os grandes aglomerados populacionais no litoral e nas grandes metrópoles também
se degrada a qualidade de vida humana e a coesão social, sendo os pobres aqueles que mais sofrem com isso. O ruído acústico e mediático dificulta a cultura do encontro e do diálogo, essencial para a construção da família e das relações humanas. Além disso, com a poluição dos rios, dos oceanos e dos terrenos agrícolas aprofunda-se o fosso das desigualdades, destruindo os meios de sustento dos mais pobres. Há uma dívida ecológica dos países desenvolvidos do Norte para com o Sul. Como pagá-la?
† António Vitalino, bispo de Beja
Convivência na diversidade
1. Emigrantes e cidadania
No dia 7 de Junho realizou-se um referendo no Luxemburgo para saber a opinião dos luxemburgueses sobre vários assuntos, sendo um deles sobre os direitos políticos dos estrangeiros, que são cerca de 46% da população do Luxemburgo, sendo 16% portugueses. O resultado deste referendo exclui os estrangeiros do direito de voto, mesmo os provenientes de países da Comunidade Europeia. Tratando-se de um país da Comunidade Europeia, que tem como objetivo a livre circulação de pessoas e mercadorias, penso que foi um passo atrás na construção da Comunidade. A livre circulação, que se limite aos direitos de residência e trabalho, não é perfeita. Não pode haver cidadãos de primeira e de segunda.
Na última nota refletia sobre a língua como a nossa pátria. Mas não pode ser o único critério de cidadania, embora importante e fundamental. Os cidadãos comunitários, ao mudar do país de origem para outro da Comunidade, após um tempo de adaptação e integração, não devem continuar a ser considerados como estrangeiros, apenas como mão-de-obra, mas cidadãos de pleno direito, sendo um deles a escolha dos seus representantes no país onde trabalham e vivem. Em vários países da Comunidade já é possível exercer esse direito, desde que se esteja inscrito nos cadernos eleitorais desse país. Compreende-se a reação dos luxemburgueses, que estão na iminência de serem minoritários no seu próprio país, mas isso não justifica a decisão popular. Ainda bem que os seus governantes digam que irão respeitar esta decisão, mas tudo farão para, no futuro, tentarem mudá-la.
Mas, por outro lado, aos direitos correspondem deveres de cidadania. A maioria dos nossos emigrantes ainda não adquiriu esta consciência e daí ficarem indiferentes a este referendo. Resta-nos um longo caminho de consciência e integração comunitária a percorrer. Todo o sistema educativo, os governos, as instituições culturais, sociais e religiosas, assim como os meios de comunicação social devem dar o seu contributo para formar esta nova cidadania europeia.
A Igreja, desde os seus inícios evangélicos que forma as consciências dos cristãos para a liberdade dos filhos de Deus, onde não pode haver acepção de pessoas, nem escravos ou estrangeiros, mas concidadãos. Este é também o tema da Mensagem papal para o Dia Mundial do Migrante e Refugiado deste ano: Igreja sem fronteiras, Mãe de todos.Inspirado nesta Mensagem é também o lema da Semana das Migrações de 9 a 16 de Agosto deste ano e da peregrinação dos migrantes a Fátima, a 12 e 13 de Agosto: Igreja sem fronteiras, somos um só corpo. Apesar dos contratempos e obstáculos não desistamos do caminho.
2. Convivência pacífica na diversidade
No Sábado, dia 6, o Papa Francisco visitou Sarajevo, na Bósnia Herzegovina, onde há poucos anos aconteceu uma guerra civil violenta, com muitos refugiados e mortes, território muito disputado pela Croácia e pela Sérvia, que antes faziam parte da Jugoslávia, que, após a queda do muro de Berlim, se foi esboroando e dando origem a vários países, uns com maioria da população católica (Croácia) ou ortodoxa (Sérvia), outros com mistura de várias etnias e religiões: muçulmanos, judeus, ortodoxos, católicos, etc. O Papa tem procurado visitar países onde há diversidade de etnias e religiões, como a Bósnia, a Albânia, a Turquia, a Palestina, etc., para acentuar a necessidade de construir a paz no respeito pela diferença e na convivência pacífica entre as diferentes etnias e religiões.
Nos seus discursos acentua este aspeto e exorta os ouvintes a saber perdoar, para construir um futuro de paz, que possibilite o desenvolvimento. Isto não quer dizer que se deva esquecer ou pôr de parte a história, mesmo que trágica. Lembrar os horrores da guerra, para não os repetir, não por medo, mas porque se deseja o bem de todos, procurando caminhos de perdão e reconciliação, no respeito pelas diferenças étnicas e religiosas. O choque das civilizações ou das religiões não pode acontecer. Como cristãos devemos tudo fazer para que se construa uma nova civilização, baseada no amor, no perdão, na reconciliação, na misericórdia, onde as diferenças passam a ser uma riqueza e não um motivo de conflito.
Estou convencido que o verdadeiro choque de civilizações poderá ser motivado pelas crescentes desigualdades entre países pobres e ricos e dentro do mesmo país o fosso entre ricos e pobres. As desigualdades económicas, visíveis e sensíveis aos olhos de todos, geram conflitos. Muitos aproveitam-se de credos religiosos para justificar a luta pelo poder. Como diz frequentemente o Papa Francisco e Bento XVI também o afirmava, ninguém pode invocar Deus para fazer guerra. Deus é Pai de todos e não quer ver os seus filhos desavindos. Invocá-lo para fazer a guerra é um sacrilégio, uma blasfémia.
Para um cristão, que se diz discípulo de Jesus Cristo, isso nunca pode acontecer. Ele mandou-nos amar e perdoar aos inimigos e a nunca retribuir o mal com a mesma moeda. Várias bem-aventuranças realçam esta atitude dos seus verdadeiros seguidores. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus... (Mt 5, 7 ss). O Ano Jubilar da Misericórdia que se avizinha ajudar-nos-á a fomentar a reconciliação baseada no amor misericordioso.
† António Vitalino, bispo de Beja
9JUN2015
A LÍNGUA É A NOSSA PÁTRIA
1. Português entre os emigrantes
Dentro de dias vamos celebrar mais um Dia de Portugal, das Comunidades e de Camões. Noutros tempos designava-se simplesmente Dia de Camões, o grande cantor da língua portuguesa. No contacto com os nossos emigrantes em países com idiomas muito diferentes do português compreendo bem o sentido e a força da expressão de outro nosso grande poeta, Fernando Pessoa: a língua é a nossa pátria.
Nos meus contactos com as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo e com os seus agentes pastorais, padres, diáconos, catequistas e outros colaboradores noto a força da nossa língua para fomentar os laços da família e das comunidades. A transmissão dos afetos, da fé e dos valores familiares e cristãos é mais eficiente quando se faz na língua das origens da família. Embora as novas gerações já frequentem ou frequentaram as escolas dos países onde residem e para a conversação entre elas usem o idioma da escola, no entanto os valores e afetos têm uma expressão que não passa só por palavras nem por formulários, mesmo que sejam orações tradicionais. Quando nos zangamos ou exprimimos sentimentos de amizade, não é apenas a expressão do rosto que fala. Também surgem as palavras correspondentes que ouvimos e aprendemos no colo ou no berço. Daí a importância da aprendizagem da língua da nossa família, para crescermos e fortalecermos a nossa identidade. Quem não faz esta experiência pode acabar por viver inseguro, sem pátria.
Sei que o cristão é cidadão do mundo. Em toda a parte é concidadão e não estrangeiro. Mas esta maturidade da vida humana e cristã passa por várias fases, pelo diálogo com a diferença. A diversidade acaba por tornar-se uma riqueza na maturidade da vida. Os emigrantes que têm a possibilidade de crescer e desenvolver-se neste sentido acabam por constituir os cidadãos adultos do futuro e construir a sociedade sem fronteiras, mas não sem pátria.
As missões e associações de língua portuguesa, com os seus movimentos e atividades próprias, como catequese, celebrações, ranchos, escolas de formação e aprendizagem da língua portuguesa e do idioma do país de residência são uma grande riqueza para ajudar neste desenvolvimento de inclusão e maturidade, em que cada um contribui com o melhor de si. Aproveito para agradecer a todos, agentes pastorais, instituições e associações das comunidades de língua portuguesa espalhadas pelo mundo, que ajudam as novas gerações a conhecer as suas raízes e a integrar-se no país de residência. Estão a dilatar a pátria pelo mundo e a ajudar ao aparecimento da nova sociedade, onde todos são concidadãos e não estrangeiros.
2. Contributo das comunidades portuguesas
A Comunidade europeia surgiu da inspiração de grandes políticos cristãos depois da experiência trágica da segunda grande guerra, cujo fim foi há 70 anos, assinalados com grande pompa sobretudo nos países que dela foram cenário. Direta ou indiretamente toda a humanidade sofreu as suas desastrosas consequências.
Todos queremos a paz, mas nem todos a sabem construir no dia a dia. A Comunidade europeia como espaço de mobilidade e de aceitação das diferenças ainda tem muito que aprender e realizar em ordem à integração harmónica de todos os que vivem no seu espaço, mas também dos muitos que a procuram para aí viver e contribuir para o seu desenvolvimento económico e social. Ainda há muitos que são marginalizados ou ficam pelo caminho, porque não conseguem encontrar o seu lugar nesta sociedade.
Todos, também as comunidades cristãs, devem dar o seu contributo para a construção dessa sociedade de concidadãos e não de estrangeiros. Precisamente sobre este contributo vou deixar aqui um último pensamento. Como podem as nossas comunidades de língua portuguesa espalhadas pelo mundo contribuir para a construção de uma nova cidadania, sem fronteiras, na riqueza da diversidade de línguas e culturas?
Afirmamos que Deus criou a humanidade, com a diversidade de cores e línguas, mas também alguém disse que os portugueses criaram a mestiçagem. Nisto reside a nossa riqueza. Saber viver e conviver com todo o ser humano. Isto tenho observado nas nossas comunidades, onde convivem pessoas provenientes dos diversos países de língua portuguesa e também de outras línguas, mas que gostam da nossa maneira de ser, simples e sem complexos.
Como membro da Comissão episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana agradeço a Deus esta capacidade e faço votos para que continue e se aprofunde, dando assim um precioso contributo para o surgimento de uma nova sociedade, de conivência pacífica de cidadãos de várias proveniências. Que os diversos agentes pastorais, sejam de que país for, sejam bem acolhidos e saibam ajudar a desenvolver esta capacidade.
† António Vitalino, bispo de Beja
2 de Junho de 2015
Ensino Superior e internet
1 - Bênção das Pastas em Beja
No dia 23 de maio Beja voltou a ser palco de uma bênção de finalistas, vulgarmente chamada de bênção das pastas das várias escolas do ensino superior do Instituto Politécnico, que trouxe à cidade sempre pacata milhares de pessoas de todo o país. Embora por poucas horas, este é o evento que, depois da Ovibeja, mais gente traz a esta capital de distrito. Nestes meus 16 anos como bispo de Beja, foi a primeira vez que este acontecimento se realizou no recinto do Instituto, dado que o pavilhão multiusos da feira de Beja, onde nos últimos anos se realizava esta festa, não reunia condições acústicas para uma celebração festiva litúrgica. Foi também a primeira vez que consegui proclamar a homilia que tinha preparado, apesar de a maioria das pessoas ficar ao sol e de pé.
Na homilia desenvolvi alguns pensamentos que julgo de importância para ajudar estes jovens que terminaram os seus cursos a construir uma sociedade menos desigual, mais fraterna, justa e ecológica.
Comecei por interrogar os finalistas se estavam convencidos que os seus respetivos cursos os ajudariam a orientar a sua vida e a contribuir para o progresso da sociedade, não apenas na área tecnológica, mas em todos os sentidos da vida humana. Por isso exortei-os a não procurar apenas uma realização pessoal na área económica, mas a desenvolver as capacidades na área das relações entre as pessoas e a natureza. A não procurar um desenvolvimento egoísta e de exploração da dignidade do ser humano e de espoliação da natureza do meio ambiente, exortando-os a ler a encíclica papal sobre a ecologia, que, dentro de dias, será publicada.
Ao pedir à Igreja a bênção para as suas pessoas e os seus cursos, agora finalizados, mostraram que querem construir as suas vidas e desempenhar as mais variadas profissões e missões, baseados em fundamentos mais sólidos e seguros que o dinheiro, os vencimentos chorudos, os bons empregos. No evangelho ouviram o conselho de Jesus, para construirmos a nossa casa, o nosso futuro sobre a rocha, e não sobre a areia da mentira, da injustiça, da corrupção, da exploração da natureza e das pessoas, sem respeito pela sua beleza e dignidade.
A rocha é a verdade, o amor, personificados na pessoa de Jesus Cristo. É o bem dos outros, o tornar o mundo e a convivência humana mais bela, harmoniosa, respirável, baseada no respeito e na confiança mútua, na solidariedade, na entreajuda.
Ao mesmo tempo, usando palavras de S. Paulo, exortava-os a ser agradecidos a todos os que contribuiram para a sua formação, professores, funcionários e famílias e a por o amor, que é o laço da perfeição, acima de tudo.
2 - Internet ao serviço da formação
Nesta bênção participaram alunos de um curso novo, muitos dos quais se encontravam pela primeira vez em Beja. Trinta e um finalistas do curso de solicitadoria, todo ele dado e frequentado pela internet, com exceção do exame oral, importante para os professores verificarem se os alunos compreenderam as matérias sem recurso ao plágio na internet, como me dizia um dos professores.
Assim muitos alunos, já na vida ativa e com família constituída, puderam formar-se numa área da sua escolha, sem ter de abandonar os seus empregos e as suas famílias. Estes finalistas convidaram-me para partilhar a sua refeição. Com os seus familiares e amigos eram mais de duzentas pessoas, vindas de todo o país, do norte às ilhas, que pareciam velhos amigos, conhecedores das capacidades e profissões uns dos outros.
Uma vez mais fui confirmado nos benefícios da internet, usada para transmitir conhecimentos e capacidades e habilitar pessoas a serem elementos válidos para o desenvolvimento da sociedade, ao mesmo tempo que lhes confere um grau de satisfação elevado, pois puderam aprofundar áreas de que gostavam, mas que sem a internet não teriam conseguido.
Convidado a abençoar estes e outros finalistas, também eu agradeci a Deus e ao Instituto Politécnico de Beja, numa altura de crise económica, que se reflete nas escolas e nas famílias, ter sido criativo e útil à sociedade desenvolvendo processos de aprendizagem mais económicos e acessíveis aos portugueses espalhados pelo território português e pelo mundo.
Também nós na Igreja precisamos de sistematizar os nossos recursos, para desenvolver as capacidades de participação de todos na vida da Igreja e da nossa diocese. Alguns dicastérios da Cúria romana já funcionam com este recurso da internet, mas ainda precisa de ser ajustado às diferentes realidades dos diversos continentes e países. Isto para não falar da realidade na diocese, onde a comunicação pode ser ainda muito melhorada, de modo a torná-la eficaz, bem como a informatização dos nossos processos. Desenvolvemos ferramentas de intercomunicação, mas, porque poucos as usam, tornam-se ineficazes. Sabemos que os recursos informáticos, sem o uso adequado ao nosso ministério e em rede, são esbanjamento de tempo e de dinheiro, de que teremos de dar contas a Deus e ao povo para que fomos chamados e enviados.
Nunca usei a informática para brincar com jogos, mas sempre para o trabalho. Mas gostaria de sistematizar esses recursos e por tudo a serviço da missão eclesial, em função dos objetivos pastorais que formulamos nos nossos planos diocesanos, cuja aplicação no concreto das nossas vidas em muitos aspetos não se realiza. Oxalá o Sínodo diocesano, que vai entrar no seu quarto e último ano, nos ajude a recuperar algumas das potencialidades destes meios, ao alcance de todos, mas com aplicação e esforço de todos.
† António Vitalino, bispo de Beja
25MAI2015
Supremo princípio da doutrina social da Igreja
1. Conflitos e reconciliação
Nas últimas semanas escrevi algumas notas sobre os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja, um precioso património para aplicar a justiça na convivência pacífica dos povos e na coesão social das democracias. Tratando-se de vários princípios, estão todos orientados para a realização da dignidade da pessoa humana, na sua singularidade e nas múltiplas relações em que está inserida. Apesar de tudo, mesmo aceitando esses princípios, nem sempre se está de acordo na sua aplicação. Daí surgem divergências, por vezes violentas, e o recurso a árbitros e tribunais, cujas sentenças podem divergir e deixar insatisfeitas as partes em oposição. Nas últimas semanas os meios de comunicação falam muito de violência nas famílias, nas escolas, nas empresas, em alguns países, da fuga de milhares de pessoas à guerra, à fome, enfrentando inúmeras adversidades e até a morte, etc. Agora que se aproximam as eleições legislativas começa a sentir-se muita violência verbal entre os partidos. Espero que não chegue a vias de facto, de modo que se torne possível criar consensos, para viabilizar um governo.
Estaremos condenados a não nos entendermos e serão os conflitos e guerras violentas um destino inevitável? Embora nem todos acreditem e se orientem pela pedagogia de Jesus Cristo, que a Igreja deve seguir e praticar, vou lembrar aqui a razoabilidade de seu conselho, ou mesmo preceito: sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso (Lc 6, 36). Este preceito é exemplificado de muitas maneiras, como na resposta de Jesus à pergunta do apóstolo Pedro sobre quantas vezes se deve perdoar: até setenta vezes sete, ou seja, sempre (cf. Lc 17, 4).
S. Paulo diz isto mesmo no belo hino à caridade (1 Co 13, 1 ss):se não tiver amor, nada sou. A caridade, no sentido que Jesus a viveu, dando a vida pelos seus inimigos, é realmente o vínculo da perfeição.
O Papa Francisco acaba de convocar a Igreja para um Ano Santo da Misericórdia e lembra-nos tudo isto de muitos modos. No dia 8 de Dezembro, solenidade da Imaculada Conceição, padroeira e rainha de Portugal, lembrando o 50º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II, o Papa abrirá a Porta Santa na basílica de S. Pedro. Nas dioceses também haverá Porta Santa, nas catedrais e santuários de maior afluência de peregrinos, para possibilitar a todos os católicos usufruir dos benefícios do Ano Santo, sem ter de ir a Roma. Será aberta no domingo seguinte, no 3º domingo do Advento, a 13 de Dezembro.
Como vamos aproveitar na diocese este Ano Santo? Estamos a celebrar um Sínodo e será o último ano e também o meu último à frente desta diocese de Beja. Vem a propósito este Ano Santo sobre a misericórdia, pois ela define o modo como Jesus entendeu a sua missão e como a Igreja a deve continuar. Por isso espero que nos preparemos bem para o viver.
2. Mensageiros da misericórdia
Jesus começou a sua pregação apropriando-se das palavras do profeta Isaías sobre a missão do Messias (Lc 4, 18 ss): O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor. Assim proclamou Jesus na Sinagoga de Nazaré, mas os seus conterrâneos ficaram escandalizados e por isso Ele foi para as periferias existenciais da sociedade do seu tempo anunciar e cumprir a proximidade do Reino de Deus. Se lermos os evangelhos, ficamos a compreender o que tudo isso significa e também o que deseja o Papa Francisco com as suas palavras e gestos e agora com a convocatória do Ano Santo.
Na Bula Rosto da Misericórdia ele sugere várias atitudes e ações e pede a toda a Igreja, às dioceses, para não se limitarem a celebrações litúrgicas, embora estas devam acompanhar e coroar toda a missão da Igreja. É altura de proclamarmos e praticarmos a misericórdia, sobretudo para com os pobres, os marginalizados, os pecadores, exercitando todas as obras de misericórdia, não apenas as sete corporais (dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos; enterrar os mortos), mas também as sete espirituais (dar bom conselho;ensinar os ignorantes; corrigir os que erram; consolar os aflitos;perdoar as injúrias; sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; rogar a Deus por vivos e defuntos).
Neste elenco estão compendiadas as boas obras, os frutos do nosso amor a Deus e ao próximo, segundo as quais seremos julgados, de acordo com o capítulo 25 do evangelho de S. Mateus. Tudo passa, só o amor de Deus fica. Ou, como se exprime S. João da Cruz: na tarde da nossa vida seremos julgados pelo amor.
De acordo com esta doutrina muita coisa tem de mudar na vida dos cristãos, na família e na pastoral da Igreja. O amor é sempre próximo e concreto. Não pode ficar em palavras ou retórica. Tem de se assemelhar ao do bom samaritano, ao de Jesus. Precisamos todos de nos converter e recorrer ao sacramento da misericórdia de Deus, a confissão, e procurar por em prática a penitência salutar, usando de misericórdia, perdão e reconciliação, como Deus usa connosco.
† António Vitalino, bispo de Beja
18MAI2015
Propriedade e uso dos bens da terra
1. Destinação universal dos bens da terra
Há anos, numa comunidade de base do nordeste do Brasil, fui interpelado por vários participantes, pedindo para que a hierarquia da Igreja assumisse o lado dos sem terra e enfrentasse os grandes latifundiários que registaram terrenos imensos, expulsando do seu território os índios e negando a possibilidade aos pobres de construírem as suas casas nessa área. Este episódio fez-me pensar sobre um dos princípios da doutrina social da Igreja, a que até então dava pouca importância, ou seja, a destinação universal dos bens da terra e a sua relação com a propriedade privada, a liberdade e o trabalho.
Na verdade, a visão bíblica e cristã do ser humano e da sua relação com a terra diz-nos que Deus confiou o mundo aos cuidados do homem, para dele tirar o seu sustento e torná-lo belo e habitável (Gen. 1, 26 ss). Portanto trata-se de um uso transformador dos bens da terra e não duma posse absoluta como proprietário e senhor. A propriedade não é um princípio absoluto, mas está em função do seu uso em ordem à alimentação e ao exercício da liberdade e da expressão da dignidade da pessoa, tendo em conta o bem comum e a solidariedade com os mais frágeis. Esse cuidado e transformação da terra pelo trabalho cria uma relação da pessoa com os bens daí resultantes, conferindo-lhe uma certa propriedade, mais no sentido do uso e administração desses bens que no sentido de posse individual e absoluta. Esta relação não é nem a dos sistemas dos Estados de ditadura socialista nem a do capitalismo selvagem. O papel da autoridade do Estado é no sentido da regulação equitativa e justa dos bens da criação em ordem ao bem comum de todos, evitando que alguns se apropriem deles de modo individualista, impedindo que outros retirem também deles o seu sustento e bem-estar através do trabalho.
Encontrar o equilíbrio entre a posse egoísta e um socialismo coletivista nem sempre é fácil. Nisto se manifesta a inteligência humana e o sentido do bem comum. A propriedade não pode ser arbitrária. Tem uma função social, garantindo trabalho e alimento não apenas para os seus proprietários, mas contribuindo para o bem da sociedade, direta ou indiretamente. Poderíamos lembrar neste sentido a parábola evangélica dos talentos (Mt 25, 14 ss), em que o Senhor elogia aqueles que os souberam fazer render e incrimina e apelida de servo mau e preguiçoso aquele que enterrou o que recebeu, não o fazendo render. Somos, pois, administradores dos bens da criação e não senhores absolutos.
2. Desprendimento e Pobreza dos consagrados
Estamos a viver um ano dedicado à vida consagrada, ou seja daqueles e daquelas que renunciaram livremente à posse dos bens, à constituição de família biológica e à autonomia da sua vontade nas escolhas dos seus projetos de vida, professando os votos de pobreza, castidade e obediência, imitando assim de perto o estilo de vida de Jesus, obediente até à morte e morte de cruz. Esta vocação e este testemunho na vida da Igreja é essencial, pois aponta para a caducidade dos bens materiais e para o único absoluto, que é Deus.
Já na primeira comunidade cristã de Jerusalém havia o testemunho de quem se desprendia dos bens em favor dos pobres, de modo que entre eles ninguém passava necessidade (Act. 2, 44 ss). Mas foi sobretudo a partir do século IV que se formaram as comunidades monásticas, em que tudo era comum, não apenas os bens materiais, mas também os espirituais. O lema de S. Bento, pai do monaquismo ocidental, permanece um modelo e um desafio para toda a vida consagrada: ora et labora, reza e trabalha. Foram estes monges que evangelizaram a Europa e construíram as raízes de uma Europa unida não pela força dos exércitos e das armas, mas pela fé e fraternidade, baseadas na oração e no trabalho comunitários.
O modo radical de viver a fé e seguir a Cristo expresso pelos consagrados é um testemunho importante num mundo dominado pelo poder financeiro da economia liberal, em que a dignidade da pessoa humana e a sua dimensão espiritual são secundarizadas. Esta economia mata, diz o Papa Francisco. Mata a dignidade da pessoa, os valores da liberdade, da igualdade, da fraternidade e marginaliza os pobres, os débeis, os frágeis. Este uso egoísta da propriedade e dos bens da criação não é evangélico nem cristão. A comunidade europeia não terá futuro, se não se abrir a estes valores do espírito, orientando os seus recursos e a sua economia, tendo em conta os valores que os consagrados vivem de modo livre e radical. Mas o Ano da Vida Consagrada deve lembrar aos próprios consagrados o primitivo fervor e a alegria da sua profissão dos conselhos evangélicos, pois também eles correm o risco de se deixar contaminar pelo materialismo reinante.
Aproxima-se a solenidade do Pentecostes e invocamos para a nossa Igreja o dom do Espírito Santo, para que nos torne testemunhas destemidas e alegres do amor de Jesus Cristo, que a todos quer salvar, tornando-nos mais fraternos e amigos de ajudar, sobretudo aqueles que a sociedade marginaliza, pois Deus não faz acepção de pessoas, mas olha com preferência para os mais pobres.
† António Vitalino, bispo de Beja - 11MAI2015
Crise e solidariedade
1. Direito ao trabalho e diálogo laboral
No dia 1 de maio comemora-se o Dia Internacional do Trabalhador, acontecimento marcante na defesa da dignidade e dos direitos dos trabalhadores. Na atualidade, com muitos desempregados e de grande precariedade, temos que lutar sobretudo pelo direito ao trabalho.
Aprendi em pequeno que é preciso ganhar o pão com o suor do rosto e que a ociosidade é mãe de todos os vícios. Numa sociedade complexa, mas organizada, em que a maior parte das pessoas exerce uma atividade dependente, quando as empresas perdem o mercado para os seus produtos, recebe-se o fundo de desemprego. Mas as pessoas desempregadas, ficando sem trabalho, correm o perigo de cair em vícios, alguns deles destrutivos da personalidade, do agregado familiar e do tecido social, de que dificilmente se regeneram.
Então, como ultrapassar esta situação sem degradar os ambientes? Esta é uma pergunta que muitas vezes me faço e para a qual nem sempre encontro respostas. Uma sociedade com muito desemprego e de baixos salários e reformas vai hipotecando o seu futuro. Por isso não se pode aprovar qualquer tipo de modernização de empresas, para as tornar mais rentáveis, diminuindo os postos de trabalho e lançando para o desemprego pessoas que dificilmente encontrarão outra ocupação. Não basta assegurar o fundo de desemprego por um determinado tempo. É preciso olhar também aos problemas humanos, à dignidade das pessoas, à paz social, ao bem das famílias.
A solidariedade não pode ser apenas do tipo assistencialista. Tem de ter em conta a promoção e ocupação das pessoas. Por isso, Estado, empresas, associações e pessoas têm de procurar soluções justas, não olhando apenas ao lucro, ao mercado, mas sobretudo aos direitos humanos. Esta economia mata, diz o Papa Francisco dos sistemas da economia liberal que apenas olham ao lucro, ao mercado.
Uma boa articulação de todos os intervenientes em alturas de crise económica é a prova da maturidade de uma sociedade, em que ninguém é marginalizado em prol de alguns ou se arruínam empresas por causa dos interesses do grupo mais forte. Sem querer dizer nomes, para não pressionar nenhuma das partes, parece-me que nem sempre se tem em conta o bem comum e a viabilidade das empresas.
Nestas alturas não se pode cortar o diálogo. É por ele que manifestamos a nossa maturidade e inteligência. Será por ele que seremos criativos e encontraremos soluções viáveis para ultrapassar as crises para bem de todos, não apenas de um grupo. Sobretudo em tempo de crise precisamos de usar todas as nossas capacidades para nos entendermos, tendo em conta o bem comum de todos e cada um. As empresas e as sociedades que deixam de dialogar em ordem ao consenso estão a minar o seu futuro e a prejudicar a todos. Mesmo no direito à greve nunca se deve por de parte o bem comum. É preciso ponderar os prós e os contras e ver se não estamos a fazer sofrer e a deteriorar todo o tecido social, pessoas, famílias e sociedade, para defender interesses de grupos e classes.
2. Solidariedade para ultrapassar as crises
Um dos princípios da doutrina social da Igreja (DSI) é a solidariedade, em articulação com todos os outros princípios. Nem sempre é possível salvar os postos de trabalho e as empresas sem mercado. Mas neste panorama é preciso salvar as pessoas, pois são o elo mais importante, mas por vezes o mais frágil.
Nas relações humanas e laborais não podemos refugiar-nos numa atitude egoísta e individualista, mas aprender a entrelaçar as nossas vidas com as dos nossos semelhantes. S. Paulo recomendava aos cristãos que não deviam ser devedores de nada a ninguém a não ser do amor, que nunca se paga, pois é gratuito. Esta experiência da gratuidade está na base da solidariedade, que põe o bem do outro acima do seu próprio. Uma sociedade que não exercita atitudes de solidariedade, de gratuidade, torna-se fria e desumana. Sem solidariedade não é possível qualquer tipo de vida social, em que a dignidade das pessoas seja respeitada.
Em tempos de crise torna-se mais necessário que nunca exercitá-la, não no sentido de tornar as pessoas frágeis dependentes de nós, mas de ajudá-las a recuperar a sua dignidade e autonomia. Por isso nunca pode ser de tipo assistencialista. Mesmo o pobre tem a sua dignidade e dá-nos a capacidade de fazer o bem, de crescermos na capacidade de nos relacionarmos com quem não nos pode retribuir na mesma moeda, mas com o tesouro do amor, que nem a ferrugem nem a traça corroem (Mt 6, 19).
Nesta atitude se funda o verdadeiro voluntariado solidário, tão necessário numa sociedade em crise. As obras de misericórdia são expressões da solidariedade, da gratuidade e da verdadeira essência do ser humano, criado para amar e ser amado. Oxalá o ano jubilar da misericórdia, anunciado pelo Papa Francisco com início a 8 de dezembro do corrente ano, nos estimule a sermos mais solidários e misericordiosos neste tempo de muita indiferença e esquecimento dos irmãos mais frágeis, as crianças, os idosos, os imigrantes, os deficientes.
† António Vitalino, bispo de Beja
28 de Abril de 2015
Políticos e Bem comum
1. Bispos interpelam políticos
De 13 a 16 de abril estiveram reunidos em Fátima os bispos de Portugal, a refletir sobre diversos assuntos da atualidade na Igreja e na sociedade portuguesa.
Hoje chamo a atenção para um parágrafo do comunicado final, que alerta para o clima eleitoral que se avizinha: “A sociedade ganharia se tivesse em conta princípios do pensamento social cristão, tão acentuados na programática exortação apostólica «A Alegria do Evangelho» do Papa Francisco. Causas essenciais como o respeito pelo bem comum, pelos princípios da solidariedade e da subsidiariedade, pela vida empresarial criadora de trabalho e da riqueza, pela justa promoção social dos pobres, pelo apoio aos mais frágeis, em particular os nascituros, às mães gestantes e às famílias deveriam constar nas propostas concretas e consistentes dos partidos e candidatos”. No nº 205 desta Exortação o Papa escreve: “Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde para todos os cidadãos”.
Isto significa que os cristãos capacitados devem participar no debate político e, através dos partidos que sintonizam com a doutrina social da Igreja, proporem-se como candidatos ao poder democrático e, uma vez eleitos, não porem de lado esses princípios.
Apesar de nenhum dos partidos da área da governação poder reclamar para si a sintonia perfeita com os princípios da doutrina social da Igreja, também não é necessário fundar nenhum partido democrático cristão. A perfeição é um objetivo de toda a vida, mas ninguém pode reclamar para si a sua plenitude. Na referida exortação o Papa expõe quatro critérios da realização do bem comum e da paz social. O primeiro é precisamente a afirmação de que o tempo é superior ao espaço.
Precisamos de lançar as boas sementes, ter paciência e esperar que penetrem na terra, apodreçam, desabrochem, cresçam e se fortaleçam, no meio do joio, das ervas daninhas e dos conflitos e possam dar bons frutos de convivência fraterna, em que ninguém é marginalizado e excluído. Mesmo os cristãos precisam de resistir à tentação de criarem guetos, cantinhos e grupos aparte, espaços dos bons e dos santos. Isto seria o contrário do que Jesus apregoou e viveu: é preciso ser luz, fermento, sal e estar preparado para sofrer por causa da paz, do amor. No meio de tudo isso alegremo-nos e sejamos felizes por termos sido achados dignos de sofrer por causa do Reino, pela boa causa da paz, pela construção de uma sociedade justa e fraterna.
2. O bem comum
Um dos princípios fundamentais da doutrina social da Igreja (DSI) é o bem comum. Mas como se coaduna este princípio com a tendência individualista e egoísta dos indivíduos? A defesa perante os agressores e o instinto de conservação não são possíveis sem a abertura aos outros, a união de forças, sem exclusão de ninguém. Uma antropologia personalista não é possível sem abertura aos outros, ao transcendente e ao Outro, sem consenso no bem comum do todo. Aqui podemos aplicar o quarto critério apontado pelo Papa para a realização da paz social: o todo é superior à parte. Mas isso não significa a ditadura do totalitarismo, mas uma atenção profunda à diversidade e ao bem de todas as partes.
Os governantes, democraticamente eleitos, precisam de estar habilitados para orientar as capacidades e esforços de todas as partes em ordem à melhor realização do bem comum, e não apenas de determinado grupo de amigos ou do grupo eleitoral. É significativa a expressão, quase sempre usada por todos os vencedores de eleições democráticas: a partir de agora governaremos para todos os portugueses. É difícil isso acontecer, pois os lobbies e os boys pressionam para receber a sua recompensa. No entanto, se alguma acepção de pessoas pode e deve ser feita é a opção preferencial pelos pobres, em ordem a criar uma sociedade inclusiva, onde reine a paz social.
Isto não quer dizer que se deixe de estimular quem investe na produção de riqueza. Mas como fazê-lo sem marginalizar os menos capacitados, sem criar guetos de pobres e excluídos? Sobre esta arte de bem governar, em ordem a criar uma sociedade inclusiva, onde reina a paz social, o bem-estar possível e o desenvolvimento integral de todos, voltaremos a refletir ao abordar outros princípios da doutrina social da Igreja, pois todos se implicam na realização do bem comum de um país e da comunidade internacional.
Hoje, o bem comum não pode ter fronteiras, países e continentes pobres ao lado de outros ricos e fechados sobre si no seu bem-estar. Por isso, o assim chamado primeiro mundo não pode assistir impávido ao radicalismo islâmico e aos milhões que fogem à fome e à guerra, morrendo muitos deles nas águas do mediterrâneo.
Tem razão o Papa Francisco e o governo italiano quando apelam para que toda a Europa ajude a encontrar soluções para estes problemas, que não são apenas de um pais, mas de todos. As nossas fronteiras não podem ser cemitérios dos pobres em fuga à fome e à guerra. O bem comum não pode ser apenas o de um país. É preciso globalizar a solidariedade e não apenas a economia e a informação. Difícil e honrosa tarefa para os políticos do futuro.
† António Vitalino, bispo de Beja
20/04/2015
Mensagem de Páscoa dos Bispos de Beja
Anunciemos a Páscoa do Senhor!
Caros diocesanos e amigos:
Da parte do Senhor que nos colocou no meio de vós e à vossa frente como pastores queremos convidar-vos a celebrar e a viver uma Páscoa autêntica.
Desculpai se começamos esta mensagem com algumas perguntas: chegamos à Páscoa trazidos por um percurso quaresmal de conversão a Cristo ou é a Páscoa que vem ao nosso encontro trazida pelo calendário? E como nos encontra ela? Instalados na nossa zona de conforto e precavidos contra qualquer surpresa, ou como pobres que esperam vigilantes a passagem do Senhor para recebermos a Vida abundante que, como filhos de Deus temos a receber em herança?
Sem Páscoa não há futuro.
Para esta sociedade do bem-estar com a psicose da segurança contra todos os riscos, a Páscoa tornou-se uma realidade estranha e insignificante que muitos preferem ignorar para que a vida decorra sem sobressaltos, como está programada, e continuemos todos a apodrecer num imobilismo egoísta e sem horizontes. Como escreveu Fernando Pessoa,
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz:
Ter por vida a sepultura.
“Páscoa” quer dizer “passagem”. Para o povo de Israel, escravo do Faraó, houve Páscoa porque Deus passou no Egito levando vida e liberdade aos que sofriam e semeando morte e destruição entre os egípcios. E porque Deus passou, também o povo de Israel passou o Mar Vermelho, atravessou o deserto e entrou na Terra Prometida.
Para nós cristãos há Páscoa porque o Senhor Jesus Cristo passou deste mundo para o Pai oferecendo-Se na Cruz por nós, por nosso amor, em vez de nós, e ressuscitou para nos dizer que estamos livres dos nossos pecados e podemos passar por onde Ele passou: neste ano de 2015 há Páscoa para nós, se quisermos, e para quantos O quiserem seguir. A passagem que Ele abriu no meio da morte continua aberta para passarmos de uma vida de escravidão, sem esperança e sem amor, para a vida plena que é a reconciliação e a comunhão com Deus e com o próximo cultivada desde já e progressivamente no seio da Igreja.
Sim, precisamos da Igreja para que haja Páscoa. Nela fomos batizados e nela renovamos a graça batismal no sacramento da Reconciliação. Nela celebramos a Eucaristia e caminhamos como irmãos para a casa do Pai onde Cristo nos espera, intercedendo por nós. Se te reconcilias com o Senhor e cultivas a vida cristã como membro vivo da Igreja, o mundo renova-se e é transformado.
Vençamos a inércia e a indiferença
Muitas vezes o Papa Francisco nos interpela para superarmos a indiferença por uma vida sempre em saída de nós mesmos ao encontro dos outros, sobretudo dos mais pobres, física e espiritualmente. Alguns cristãos ficam fechados nos seus grupos e devoções, sem viverem a alegria da missão.
Cristo ressuscitado aparece aos Apóstolos e envia-os a todo o mundo, para levarem a Boa Nova da vida que Ele ganhou para nós. Envia sobre eles o Espírito prometido que os torna evangelizadores com Espírito. Muitos milhões através dos tempos acreditaram na Boa Nova e nós também, através do testemunho dos Apóstolos e da Igreja. Se chegou até nós e a recebemos, devemos transmiti-la. Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra? (Lc 18, 8)
Esta interrogação deve estar sempre presente em nós para nos incentivar à evangelização. A Europa está envelhecida, demográfica e espiritualmente, e nós não podemos ficar de braços cruzados. Por isso a nossa diocese de Beja encontra-se a celebrar um Sínodo e o Papa Francisco convocou um Sínodo dos Bispos sobre a família e anunciou um Ano jubilar da Misericórdia, que vai começar na solenidade da Imaculada Conceição, no 50º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II.
Cristo ressuscitado é a nossa esperança e a nossa alegria. Na Sua Cruz gloriosa encontramos a sabedoria e a força de que precisamos para dar testemunho d’Ele., Impelidos pela Sua caridade, saiamos ao encontro de quem vive na solidão e na tristeza, com a Boa-notícia no coração e nos lábios: Cristo venceu a morte, ama-te e vem ao teu encontro para transformar a tua vida! Acredita n’Ele e seràs salvo!
A paz de Cristo Ressuscitado esteja convosco!
Rezai por nós.
† António Vitalino, Bispo de Beja
† D. João Marcos, Bispo Coadjutor
Mudança e atualização
1. Interpelações da mudança
De 26 a 29 de janeiro, em Albufeira, o clero das dioceses de Évora, Beja e Algarve realizou as oitavas Jornadas de Atualização, promovidas pelo Instituto Superior de Teologia de Évora, subordinadas ao Tema - Que pastores para a Igreja no mundo atual? Há cinquenta anos atrás o concílio Vaticano II, convocado pelo bom Papa João XXIII, agora proclamado santo, refletiu sobre quase todos os aspetos da doutrina e vida da Igreja sob o prisma do seu significado para o mundo, fenómeno que ficou conhecido pela palavra italiana aggiornamento, que podemos traduzir por por-se em dia, atualizar-se.
Para uns isso foi um escândalo e para outros um sinal de primavera, de rejuvenescimento. Como pode Deus e a revelação da sua vontade atualizar-se? Não será antes a humanidade que tem de adaptar-se? Por outro lado, como tornar significante hoje o que foi expresso numa cultura do passado? Afinal, quem tem de adaptar-se?
Estas interrogações mereceriam grandes reflexões. Mas, na brevidade desta nota, focarei apenas um aspeto, referente aos agentes principais que são chamados a viver e testemunhar a revelação de Deus nos tempos atuais. Foi esse o objetivo destas jornadas, sempre a ter em conta em todas as atualizações.
A terra move-se, as gerações e transformações dos ambientes e das culturas sucedem-se, hoje de modo mais veloz, devido ao mundo global em que vivemos e aos meios de que dispomos. Precisamos de alguns pontos de referência para ler e descobrir o sentido de toda esta mudança. Como dizia Santa Teresa, cujo V centenário do nascimento estamos a celebrar: nada te perturbe, nada te espante, tudo passa, Deus não muda, a paciência tudo alcança; quem a Deus tem, nada lhe falta: só Deus basta.
Deus é realmente o ponto de referência, que tem como ponto alto da sua revelação histórica a vida e mensagem de Jesus Cristo. É na sua referência a Jesus Cristo que a Igreja de todos os tempos encontra o sentido da sua natureza e missão. As testemunhas desse ponto de referência só significam alguma coisa nessa relação com Jesus Cristo e com o mundo do seu tempo, em constante mutação. Por isso precisam de um processo de atualização contínua, para serem significantes. Daí o tema destas jornadas: que pastores para o nosso tempo?
Foi num ambiente de convivência fraterna, entre bispos, presbíteros, diáconos e conferencistas de diversos meios, formação e profissões, em palestras, trabalhos de grupo, oração e convívio, que fomos sendo interpelados sobre as nossas relações primordiais. De salientar o contributo de D. Jorge Patron Wong, secretário da Congregação do Clero. Todos ficamos mais conscientes de que a nossa vida e ação tem de ser sempre numa perspetiva de filiação, fraternidade e paternidade, à semelhança de Jesus, que viveu a sua condição de Filho de Deus, irmão nosso e sempre em relação com o Pai, cuja vontade veio para cumprir.
2. Mudanças pessoais e estruturais
As mudanças são de ordem pessoal e estrutural. Quem recebeu a vocação para o serviço ao povo de Deus nunca pode esquecer essa atitude fundamental de relação com aqueles que deve servir: humilde e fraterna, procurando centrá-los naqu’Ele que enviou, pois só Ele é Mestre e Senhor.
Mas isto não se consegue, se o enviado não cultivar em relação a Ele também uma atitude filial contínua e fiel, de escuta e diálogo, como quem procura saber a vontade de quem o envia e as necessidades daqueles a quem é enviado. Além da atitude fraterna e filial, o servidor deve assumir também a missão paterna, ajudando a nascer e a crescer os filhos de Deus até à maturidade das relações fundamentais e caraterísticas do povo de Deus. Isto implica uma conversão contínua dos pastores pela oração, abertura aos dons de Deus, formação, atualização, e, muito especialmente, pela caridade pastoral, como se exprime um documento do concílio.
A partir daqui surge a necessidade de adequar os meios e instrumentos comunitários da missão dos pastores em relação às pessoas, comunidades e povos de cada tempo. A caridade pastoral é criativa e descobre os melhores meios para melhor servir. É na relação fraterna entre os pastores e o povo de Deus que se descobrem esses meios mais adequados, para atingir a finalidade da vida e mensagem de Jesus Cristo, que tem de ser também a da Igreja e dos pastores.
À luz deste princípio muitas rotinas e estruturas pastorais se revelam obsoletas e precisam de ser mudadas. Mas isto não pode fazer cada um por si. É preciso deixar-nos envolver, numa comunhão profunda, que nos faz participar na vida e no bem do todo, que é o Povo de Deus de cada tempo, região e cultura.
Para descobrir as melhores estruturas de comunhão e participação convocámos um Sínodo, que pretende envolver a todos na descoberta da vontade de Deus e das necessidades deste povo no Alentejo.
Direi mesmo que a estrutura sinodal da Igreja é a mais adequada e perfeita de todas, em ordem a atingir aquele ideal de vida cristã, relatado no livro dos Atos dos Apóstolos: todos os que abraçaram a fé eram assíduos e perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, no partir do pão e nas orações (2, 42)..., de modo que entre eles ninguém passava necessidade (4, 34).
Nesta súmula temos um programa de vida pessoal e comunitário, que, posto em prática, dará hoje novo vigor à pastoral da Igreja.
† António Vitalino, Bispo de Beja
02 de Fevereiro de 2015
Vidas em contra-corrente
1. Fora de moda por opção
A 30 de novembro de 2014 começámos a celebrar um ano dedicado pelo Papa à vida consagrada, ou seja, àquelas opções de vida que estão em contra-corrente e fora de moda por opção, que leva pessoas a constituirem comunidades cujo objetivo não é constituir uma família de sangue ou para satisfazer o corpo ou a vontade própria, mas para louvar a Deus e servir os outros, sobretudo os mais pobres. São as comunidades de vida consagrada, de frades e freiras como se diz popularmente, em que os seus membros renunciam aos estilos de vida usuais e prometem seguir e imitar Jesus Cristo através dos votos de obediência, pobreza e castidade.
Em Portugal estamos a celebrar uma semana especialmente dedicada à vida consagrada, que termina no dia 2 de fevereiro, festa da apresentação de Jesus no templo e que na diocese vai ter um ponto alto no dia 31 de janeiro, com um encontro diocesano no Centro Pastoral de Beja. Neste encontro queremos fazer memória agradecida do passado na diocese e na Igreja, abraçar o futuro com esperança e viver o presente com paixão, como se expressam os bispos portugueses na nota pastoral que publicaram para este ano da vida consagrada.
Presentemente temos na diocese cinco comunidades de vida consagrada masculina: em Beja, os Carmelitas e a Fraternidade dos Irmãozinhos de S. Francisco de Assis; em Santiago do Cacém, a Congregação da Missão ou Vicentinos; em Almodôvar, a Congregação do Verbo Divino ou Verbitas; em S. Martinho das Amoreiras e Colos, a Milícia de Cristo ou Milicianos. Está também entre nós, na Amareleja e Barrancos, um missionário xaveriano, o Padre Carlos, da Bolívia.
Comunidades femininas temos em Beja o Carmelo, as Oblatas do Divino Coração, fundadas por D. José do Patrocínio Dias, que têm também uma comunidade em Odemira, as Cooperadoras da Família na Casa Episcopal, as Carmelitas Missionárias, as Franciscanas Missionárias de Maria na Fundação Manuel Gerardo, que têm também uma comunidade em Vila Nova de Santo André e as Irmãs da Divina Providência e Sagrada Família, no Seminário, que têm também uma comunidade em Vila Alva.
Em Ferreira do Alentejo está uma comunidade das Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, que também já tiveram uma comunidade em Moura. Em Sabóia está uma comunidade das Missionárias do Espírito Santo. Em Safara estão as Servas da Divina Providência de Maria Auxiliadora e do Próximo. Na Amareleja estão as Servas de Nossa Senhora de Fátima.
Desde o verão temos em Colos os Servos de Maria do Divino Coração, uma nova comunidade vinda do Brasil, que residem na casa onde antes estavam as Irmãs do Bom Pastor, que deixaram a diocese no verão passado. Também as Irmãs Doroteias, que estavam em S. João de Negrilhos, deixaram a diocese no mês de dezembro. Além destas comunidades há algumas consagradas em vários pontos da diocese, a título pessoal, sem inserção comunitária.
2. Significado desta diversidade de vida consagrada
Para quem considera este fenómeno de fora, pode perguntar-se sobre o porquê desta diversidade e opinar que a sua missão e testemunho seria mais forte e significativo, se constituissem um só grupo empenhado no apostolado diocesano. É a tentação da uniformidade, que não aprecia a beleza da diversidade de pessoas e dons na sociedade e ainda menos na Igreja. Embora ao longo dos séculos algumas formas de vida consagrada e institutos tenham desaparecido, perdido o seu significado histórico e geográfico, no entanto as comunidades de vida consagrada são significativas por aquilo que são e pela consagração radical da vida dos seus membros na Igreja, e não tanto por aquilo que fazem.
Quem vive a sua configuração com Cristo, acontecida no batismo, dessa forma radical, é sempre significativo e altamente útil na Igreja, pois testemunha a dimensão do sentido último da vida humana, cuja realização plena acontece apenas na eternidade. É aquilo a que se costuma chamar a dimensão escatológica da vida cristã. Estas pessoas têm um sentido apurado da dignidade da pessoa humana e são extremamente úteis numa sociedade utilitarista e funcional, em que as pessoas são apenas números, máquinas de trabalho e descartáveis.
Uma Igreja e uma diocese sem estes diversos estilos de vida consagrada, chamados carismas ou dons da graça de Deus, é pobre e sem futuro. Por isso a nossa diocese está muito grata aos consagrados e consagradas presentes entre nós, quer tornar visível esta gratidão e implora de Deus as vocações para estas comunidades e muitas outras espalhadas pelo mundo.
Mas as vocações não surgirão, se não as implorarmos e se os próprios consagrados não viverem o seu presente com paixão e alegria. Assim poderemos abraçar o futuro com esperança, confiantes que, mesmo atravessando um deserto demográfico na Europa, o Espírito de Deus continua a fazer surgir até das pedras os filhos e filhas de Deus, que se consagram radicalmente a Deus no serviço material e espiritual aos irmãos mais necessitados.
† António Vitalino, Bispo de Beja
26JAN2015
Órfãos de pai, mas não de mãe
1. Filhos abandonados
Frequentemente encontramos pessoas na rua e em instituições que não conhecem os seus progenitores ou não querem falar deles. Os motivos deste corte efetivo e afetivo são vários. Mas os efeitos no desenvolvimento destas pessoas são perniciosos para os próprios e para a sociedade. Sempre me tocou e questionou uma afirmação atribuída a Deus no livro do profeta Isaías: mesmo que uma mãe esqueça o filho que amamenta, Eu não vos esquecerei. Esta certeza do amor de Deus, mais forte e fiel que o de uma mãe, consola-me, mas gostaria que ela se tornasse a certeza de muita gente e sobretudo das pessoas esquecidas por suas mães. Não é fácil transmitir esta certeza da fé, sobretudo a quem não fez a experiência do amor materno.
Apesar da consolação da fé, não podemos deixar de nos comover e chorar ao ver crianças a sofrer por causa do abandono e da insensibilidade de muitos adultos, que abusam delas, as escravizam e até usam como armadilhas para a guerra e como bombas suicidas. O Papa Francisco, no encontro com os jovens nas Filipinas, ficou comovido com a pergunta de uma criança sobre o sofrimento das crianças e disse que a nossa melhor resposta é chorar com quem sofre. Disse mesmo que precisamos de aprender a chorar, sinal de que temos um coração sensível e compassivo com o sofrimento do próximo.
Alguns pedagogos falam de uma sociedade sem pai, mas para muitos não há pai nem mãe. São órfãos dos dois progenitores. Como superar este abandono? Em vez de procurar respostas demagógicas e de incriminar os pais insensíveis, que não desempenham a sua principal missão humanitária, será mais importante tornarmo-nos todos pais e mães ternos e acolhedores, disponibilizando-nos como pais adoptivos logo nos primeiros meses das crianças abandonadas, em vez de as institucionalizar.
2. Migrantes e refugiados entre os mais pobres
No dia 18 de janeiro, sempre no domingo a seguir ao Batismo do Senhor, a Igreja celebrou o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Em Portugal a Obra Católica das Migrações em conjunto com a Caritas Portuguesa, a Agência Ecclesia e este ano também com o Departamento Nacional da Juventude realizou umas jornadas sociopastorais sobre a mobilidade. Na Casa de Santa Maria Rafaela, em Palmela, juntou uma centena de pessoas vindas das várias dioceses e também alguns agentes pastorais a trabalhar entre os migrantes, a fim de refletir sobre este setor e ajudar a sociedade a conviver com estes novos concidadãos, considerando-os um enriquecimento em todas as dimensões da vida, e não um problema desestabilizador.
Na sua mensagem para este dia o Papa Francisco diz que os migrantes e refugiados se contam entre os mais pobres da sociedade, apesar de muitos terem grande sucesso nos países de destino. Embora a emigração seja um direito, no entanto a grande maioria dos migrantes deixa a sua terra, amigos e familiares por falta de condições de vida digna no país de origem, esperando ser bem sucedidos na viagem de transição e no país de destino.
Por isso o Papa apela para sermos uma Igreja sem fronteiras e mãe de todos, com tudo o que isto implica nas igrejas de origem e de destino dos migrantes, atenção uns aos outros, uma cultura de acolhimento, de solidariedade e entre-ajuda, sobretudo nos primeiros tempos, de modo que ninguém se sinta como intruso, indesejável ou descartável, agravando assim o seu sofrimento.
À globalização do fenómeno migratório será desejável corresponder com a globalização da caridade e da solidariedade, ajudando os países menos desenvolvidos a fixar os seus cidadãos, oferecendo-lhes condições de vida e de trabalho digno, para sustentar e educar as suas famílias, de modo a evitar a necessidade de emigrar.
Neste apelo do Papa manifesta-se a natureza de uma Igreja sem fronteiras e mãe de todos os povos, preocupada com o bem de todos, sem aceção de pessoas. Oxalá este modo de ser Igreja se torne cada vez mais uma realidade também entre nós.
† António Vitalino, Bispo de Beja
21JAN2015
Quebras da confiança
1. Ruturas ou acidentes de caminho?
Na última nota abordei a necessidade de restabelecer a confiança em todas as relações, para que a paz e o progresso sejam possíveis. Mas logo acontecem os atos de terrorismo em França e continuam em muitos outros continentes, mas sem o mesmo frenesim mediático. Tratar-se-á de ruturas que impossibilitam o restabelecimento da confiança ou simplesmente de acidentes de percurso, que vem fortalecer os construtores da paz?
No evangelho Jesus proclama felizes os construtores da paz, porque alcançarão o Reino de Deus. Apesar disso os seus seguidores têm sentido muitas dificuldades em seguir esse caminho e muitos foram e são vítimas de violência. Penso nos mártires ao longo dos séculos, mas também nos de hoje, em muitas partes do mundo.
No entanto, são estas vítimas que vão mudando as mentalidades e atitudes, fazendo ver e crer que nunca haverá paz imposta pelo medo das armas e da violência, mas somente pelo dom da vida, o perdão e o amor, mesmo aos inimigos, como proclama Jesus. Os milhões de pessoas que sairam à rua para dizer não à violência e sim à liberdade de expressão e de religião dão força a estes valores fundamentais das sociedades democráticas.
Mas a liberdade de pensar, de expressão e de ação não são valores absolutos, isolados de tantos outros também importantes, como o respeito pela dignidade das pessoas, com as suas opiniões e crenças, o seu direito a ser tratadas com igualdade e como irmãos. Em nenhum caso podemos fazer justiça pelas próprias mãos ou tirar a vida a quem nos ofende.
No entanto, as autoridades devem estar atentas e não permitir que os seus cidadãos, sejam maioria ou minoria, sejam maltratados ou difamados. O código moral dos cristãos é claro sobre como proceder. Mas quem não tem esses princípios deve respeitar, pelo menos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por isso nem todos somos Charlies nem terroristas, embora sejamos contra todos os atos de violência.
No meio das manifestações de solidariedade para com todas as vítimas, temos de fazer o nosso exame de consciência, pessoal e coletivo, e bater com a mão no peito, pois todos temos culpas nas situações de violência que vão acontecendo no nosso planeta.
A exploração de pessoas e povos, as desigualdades crescentes, a corrupção e o enriquecimento ilícito, as injustiças, o desemprego, o esbanjamento, o desrespeito pelas convicções étnicas e religiosas das pessoas, tudo isso cria ambientes de racismo e xenofobia, que fomenta a desconfiança e a violência. E nisto são tão culpados os fundamentalistas religiosos como os ideólogos ateus militantes, os indiferentes perante o mal do próximo e os que apenas falam mal dos outros e nada fazem para construir a paz.
2. O dom da fraternidade verdadeira
Com a celebração do Batismo de Jesus por João Batista terminou a quadra festiva de Natal e Jesus deu início à sua vida pública, anunciando o Reino de Deus. Jesus colocou-se na fila dos pecadores para receber o batismo de João e santificar as águas, para que por elas e pelo Espírito Santo pudéssemos renascer, ou seja, nascer de novo, para vivermos nas pegadas de Jesus Cristo.
Este nascimento é um dom da fé através da mediação da Igreja. No Batismo pedimos à Igreja a vida eterna, ou seja, uma vida onde já não é o homem mortal do pecado que reina, mas Jesus Cristo com o seu Espírito. Este renascimento é um dom, mas é preciso deixar crescer a criança nova em nós, não apenas em estatura, mas também em sabedoria e graça, ao modo de Jesus, que passou no mundo fazendo o bem, perdoando, ensinando e entregando a vida por todos.
No Batismo nasce o homem para a fraternidade universal, mas precisa de alimento para percorrer o caminho até à maturidade. O essencial desse alimento também é dom através da comunidade dos discípulos de Jesus, pois falta-nos a capacidade para nos auto-abastecermos.
Na génese do homem novo há sempre essa colaboração entre o humano e o divino. As misturas feitas só a partir de nós mesmos tornam-se remédios sem simbiose dos elementos. Não têm energia para nos fazer crescer até à maturidade do homem segundo Jesus Cristo. Um simples voluntarismo ou moralismo não fomentam o homem fraterno ao modo de Jesus, livre e alegre na entrega de si mesmo para libertação do egoísmo, que faz secar a seiva da vida e da relação fraterna entre todos.
Estes pensamentos sobre o batismo como raiz da vida nova de relações fraternas, baseadas no amor, que nos liberta do medo, da opressão e da tristeza surgem ao ver tantos milhões a marchar contra a violência, o terrorismo e pela liberdade de expressão e de religião. Isso é importante, mas creio que ficamos a meio caminho, se não renascermos para o ideal de homem que ama, perdoa e reza pelo seu inimigo, que se põe ao serviço, sobretudo dos mais frágeis, como o fez Jesus Cristo.
Neste mundo de senhores, de desiguais, de acepção de pessoas, de injustiças, de corrupção, de indiferença perante o sofrimento de muitos milhões, de opressão e escravidão, será difícil eliminar a violência. Por isso é bom acordar e começar a caminhar. Mas não tenhamos ilusões. Temos um longo caminho a percorrer. Precisamos de alimentar a esperança, acolhendo com docilidade e gratidão os dons que a fé nos transmite.
† António Vitalino, Bispo de Beja
12JAN2015
Recuperar a confiança
1. Regenerar as relações fundamentais
A época de Natal e o início de ano civil, mesmo para quem não professa nenhuma confissão cristã, desperta nas pessoas e grupos da nossa sociedade uma grande nostalgia pelo agregado familiar e abre feridas profundas nas pessoas quando faltam manifestações de proximidade e afeto entre os seus membros.
Nas diversas festas de Natal em que participei, em lares e instituições, vi muitas lágrimas nas faces rugosas de vários idosos, ou porque perderam recentemente alguém da família ou porque não tiveram nenhuma manifestação de carinho por parte dos seus familiares.
Isto fez-me refletir uma vez mais sobre a estrutura relacional do ser humano, apesar da afirmação crescente do individualismo e relativismo reinante no mundo atual. Há em todos os seres, e muito especialmente nos humanos, uma necessidade de múltiplas relações, que exigem muita atenção e cuidado para não serem defraudadas e levarem a uma desilusão profunda e à solidão insuportável. Isto significa que precisamos de curar muitas feridas e recuperar a confiança uns nos outros, nas instituições sociais e na própria família.
Como curar estas feridas, para estabelecer um clima de confiança à nossa volta? Sem pretensão de apresentar nesta breve nota todos os remédios, vou apontar alguns, que nos podem ajudar a viver um ano com mais alegria e esperança, apesar das imensas dificuldades com que nos deparamos na construção do nosso bem estar.
2. Recuperar a dignidade própria e dos outros
Em primeiro lugar, temos de fazer o nosso exame de consciência, pois muitas das causas da desconfiança estão em nós mesmos e os remédios também ao nosso alcance. O Papa Francisco fez uma parte desse exame no discurso aos membros da Cúria do Vaticano, a 22 de dezembro, apontando um elenco de 15 pecados ou deficiências que nos impedem de exercer com alegria e eficiência a missão da Igreja, e não apenas os colaboradores do Papa.
Não os vou repetir aqui um a um, mas resumi-los nas palavras amor e paixão pelo bem das pessoas, à luz da nossa fé em Jesus Cristo, que se fez um de nós e se entregou para a salvação de todos. Se temos fé em Deus, não podemos deixar de amar os nossos irmãos. De contrário, estamos a mentir, a dizer uma coisa e a fazer outra, temos dupla personalidade ou somos esquizofrénicos ou então sofremos de alzheimer, perdemos a memória do que somos, da nossa dignidade.
Em segundo lugar, temos de reconhecer que sofremos de algumas deficiências, não somos perfeitos, nem sequer no cumprimento dos dez mandamentos, um código fundamental para a convivência hum ana pacífica. Mas também não desesperamos, porque nos sabemos amados por Deus apesar do nosso pecado e temos a possibilidade de implorar o perdão e de o conceder a quem nos ofendeu, como rezamos no Pai Nosso, a oração que Jesus ensinou aos apóstolos.
Em terceiro lugar, embora conscientes da liberdade do ser humano, que o pode fazer enveredar por caminhos de desencontro e também conhececedores dos meandros da nossa justiça, que tem dificuldade em desvendar o mistério do mal e da corrupção, não deixamos de acreditar nos homens de boa vontade e de criar laços de confiança, para que o trigo se fortaleça em relação ao joio, o bem prevaleça sobre o mal e a nossa sociedade se torne mais humana, justa, fraterna, livre e solidária.
Felicito as pessoas que fazem voluntariado nas nossas comunidades e instituições, dando uma parte do seu tempo e das suas vidas a visitar, apoiar e consolar aqueles que vivem sós e esquecidos da sociedade, isolados nas casas, nos hospitais, nos lares, nas prisões, etc. São os reis magos dos nossos tempos, guiados pela estrela do amor de Deus, que os leva até às grutas daqueles para quem não há lugar nas nossas estalagens.
Neste sentido desejo um bom e abençoado ano a todos os diocesanos e pedimos a todos para que se deem as mãos, fazendo cada um o que está ao seu alcance para o bem daqueles com quem vivemos, sobretudo dos mais débeis.
Assim construimos a nova sociedade da confiança e também a nossa diocese em sínodo.
† António Vitalino, Bispo de Beja,
05JAN2015
Caminhos de renovação
Tradição e renovação
No dia 25 de Novembro do corrente ano a Unesco declarou o Cante Alentejano património imaterial da humanidade. Parabéns aos alentejanos por terem sabido conservar viva a sua cultura musical, expressão profunda e bela do seu modo de comunicar e conviver em sociedade. A influência do poder comercial e mediático dos modernos cantores de outros países não conseguiu abafar a alma alentejana. Mas espero que a crise demográfica também não o consiga, relegando o cante para os ambientes museológicos e retirando-o das igrejas, das festas populares, da rua e das tabernas.
A tradição cultural, o clima e a natureza fazem parte da identidade de um povo. No panorama nacional o Alentejo ainda é das poucas zonas onde a tradição se mantem. Mas sabemos que sem evolução e renovação não será possível ter futuro, no cante e em todas as expressões da vida de um povo. Por isso será necessário estudar esta expressão cultural, torná-la presente nas escolas elementares e superiores, para que não degenere.
Este reconhecimento trouxe honra aos alentejanos, mas também compromissos em ordem à preservação deste património. Quem se encarrega disso, contando com a colaboração de todos? Autarquias, escolas, igrejas, festivais, clubes? Aqui está uma área em que todos somos corresponsáveis e devemos colaborar. E não é favor nenhum, pois o cante encanta, junta, une e fraterniza as pessoas e os ambientes. Da nossa parte tudo faremos para que o cante na sua versão religiosa continue a ecoar nas nossas igrejas e procissões.
Mas muito mais coisas, modos de ser, valores e ideais precisamos de transmitir às novas gerações e adequá-las aos novos tempos. O Papa Francisco, nos discursos feitos recentemente no Conselho da Europa e no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, desafiava estas instituições importantes na construção de uma Europa de paz e de progresso a não ficarem apenas pela dimensão económica e financeira da comunidade europeia, mas a colocarem no centro das suas decisões a dignidade da pessoa humana nas suas relações multipolares e transversais.
A verdade, a solidariedade, a subsidariedade, o bem comum, o nós integral das pessoas em sociedade são património da doutrina social da Igreja sobre o qual os fundadores da Europa quiseram construir uma Europa que resolve os seus conflitos e divergências pelo encontro das pessoas e dos povos através do diálogo e não pela violência das armas, pelo consenso e entreajuda.
Este rico património da Europa, criado ao longo de séculos, cultivado pelos filósofos, escritores, artistas, igreja, escolas e universidades, expresso de muitos modos, tem raízes profundas que é preciso conhecer e amar, para que daí surjam novos dinamismos de desenvolvimento global para toda a humanidade, sem marginalizar ninguém, pessoa, grupo ou povo, nem reduzindo as pessoas a números ou objetos descartáveis. A visão bíblica e cristã do mundo contem potencialidades benéficas para a construção duma nova civilização de paz e de amor, como se exprimia o bem-aventurado Papa Paulo VI.
Olhando para os obreiros de um mundo novo
No alvoroço de notícias, comentários e opiniões acerca do estado da nossa sociedade podemos ser levados a esquecer as pessoas concretas, que vivem ao nosso lado e os acontecimentos do dia a dia, que fazem parte do nosso quotidiano, que são os verdadeiros obreiros do mundo novo, mais justo, solidário e humano. Neste panorama os meios de comunicação dão realce a algumas personalidades e a determinados acontecimentos, como as palavras e gestos do Papa Francisco, alguns acontecimentos de violência causada por pessoas, grupos ou por fenómenos da natureza.
Da minha última semana quero hoje realçar algumas pessoas e instituições, que me lembraram quanto nós e a sociedade lhes devemos pelo seu testemunho fiel de vidas dedicadas ao serviço de Deus e dos outros. Em primeiro lugar, a celebração de 90 anos de vida de dois sacerdotes da nossa diocese, os padres José Carvalho e Olavo, e dos 60 anos de sacerdócio deste último e também dos 60 anos da fundação do Carmelo de Beja.
Todos estes anos de vida e de consagração a Deus e à sociedade, através de muitas dificuldades e carências, mas sempre com a firmeza da fé, das convicções bem arraigadas e da sua dedicação generosa despertou em mim e em muitos outros grande gratidão e admiração. No meio da instabilidade dos tempos que correm, estas pessoas e instituições são um património precioso, que nos ajudou a chegar até aqui e que precisa de ser continuado, mas com novos dinamismos, para não retrocedermos no caminho da nossa humanização e da construção do povo de Deus.
No ano da vida consagrada queremos aprender a ser gratos por tantos dons que Deus nos concedeu nas pessoas e comunidades dos mais diversos institutos de vidas totalmente dedicadas a Deus e ao serviço dos mais débeis da nossa sociedade. Sem gratidão não seremos beneficiados com novos dons de vidas consagradas.
No fim do verão deixou-nos a comunidade das Irmãs do Bom Pastor, que estavam em Colos há vários anos. Na próxima semana vai deixar a nossa diocese a comunidade das Irmãs Doroteias, que estavam em Montes Velhos, S. João de Negrilhos e que durante muitos anos foram preciosa ajuda ao trabalho pastoral, social e educativo lançado Padre Olavo.
Felizmente recebemos também este verão uma comunidade brasileira dos Servos de Maria do Coração de Jesus, que agora residem em Colos e na solenidade da Imaculada Conceição, dia 8 de dezembro, ordenamos 3 diáconos para o serviço na diocese.
Sem cair numa avaliação pessimista a partir da quantidade de comunidades e pessoas consagradas, temos de reconhecer que as palavras evangélicas de Jesus mantêm a sua atualidade: A seara é grande e os operários são poucos, pedi ao Senhor da Messe que envie operários para a sua messe (Mt 9, 37-38).Este pedido faço a todos os diocesanos. Peçamos ao Senhor mensageiros para a messe alentejana, mas também não esqueçamos de ser gratos por todos aqueles que desgastaram as suas vidas ao serviço deste povo.
† António Vitalino, Bispo de Beja
09DEZ2014
Caminhar sem destino?
Becos sem saída
Na semana passada assistimos, a nível do país e internacionalmente, a alguns acontecimentos inesperados e que nos devem fazer pensar, se todos terão alguma saída ou serão becos sem sentido e sem saída. Muitos jogam na lotaria, mas nem todos têm sorte. Apenas alguns. Outros sem jogarem, conseguem o mesmo objetivo, mas prejudicando outros, que se recusam enveredar pelos caminhos da corrupção. Admiro as pessoas que, escolhidas democraticamente para assumir responsabilidades públicas, não se deixam corromper, resistindo à tentação de enriquecer rapidamente. Nem todos são iguais, dizia um político esta semana. Ainda bem, digo eu. Mas será que o nosso povo vê a diferença e continua a acreditar na boa fé das pessoas que estão à frente dos destinos do país e do mundo?
Um caminho de esperança percorreu na semana passada o nosso Papa Francisco, indo à Turquia, país de maioria islâmica, mas onde os cristãos são tolerados e sobretudo indo a Constantinopola, hoje Istambul, outrora capital oriental do império romano, onde reside o Patriarca ecuménico da Igreja Ortodoxa, agora Bartolomeu I, a qual no século XI se separou do Papa de Roma. Com o Patriarca Bartolomeu I o Papa Francisco celebrou a festa do apóstolo Santo André, irmão de S. Pedro, o qual foi o primeiro a seguir Jesus, apontado por João Batista como o Messias esperado.
Foram muitos os sinais e as palavras do Papa apelando à reconciliação de todos os cristãos, que acreditam em Jesus Cristo e de todos os que acreditam em Deus, como é o caso dos islamitas. Num dos seus discursos o Papa disse que ninguém pode invocar a Deus para justificar atos de violência e muito menos a Jesus Cristo, que não resistiu com meios ou atitudes agressivas à violência que os malfeitores usaram para com Ele e até pediu perdão para quem O crucificou. Infelizmente, muitos ainda não ouviram ou não seguem estas palavras e este testemunho. Diariamente muitos são mortos, violentados, expatriados, expropriados dos seus bens por causa da sua fé, como está a acontecer no autoproclamado estado islâmico e em muitas outras partes do mundo.
Apesar de tudo isto os cristãos não desistem de proclamar e testemunhar a sua fé. No domingo, dia 30 de novembro e festa de Santo André, demos início ao ano da Igreja com o tempo do Advento, que significa vinda e chegada. Vinda d’Aquele que há-de vir para julgar os vivos e os mortos segundo a justiça de Deus e chegada d’Aquele que já veio na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus, que assumiu a nossa condição humana, com todas as suas fraquezas e debilidades, nascendo em Belém e dando a vida por nós na Cruz. Os cristãos são chamados a caminhar na esperança, sofrendo e penando como todos os outros, sobretudo os oprimidos e marginalizados, mas na confiança de que o seu caminho tem sentido e por isso não desistem de continuar a sua peregrinação até à Jerusalém celeste, como se expressa o último livro da Bíblia, o Apocalipse.
Chamados a ser samaritanos no caminho
No dia 8 de Dezembro, às 16,00 horas, em Beja, vão ser ordenados três diáconos (Amadeu Lino, Godfrey Okeke e Luís Marques), três jovens vindos de longe e que há vários anos estão a fazer o seu discernimento vocacional na nossa diocese. Vão receber o primeiro grau do sacramento da ordem, o diaconado, instituído pelos Apóstolos em Jerusalém, para atender os mais frágeis da comunidade, os órfãos, as viúvas, os doentes.
Por este sacramento eles são escolhidos e capacitados para esse serviço, mas também toda a Igreja e a diocese é chamada a ter presente este caminho seguido por Jesus e os Apóstolos. Não basta anunciar a todos a boa nova de Jesus, morto e ressuscitado, e celebrar em comunidade a nossa fé. É preciso estar atentos aos mais débeis, em primeiro lugar nas nossas comunidades, de modo que ninguém seja esquecido ou passe necessidade. Temos de ir até às periferias geográficas e existenciais, como se exprime o Papa Francisco, e pelos caminhos proceder como o bom samaritano, que socorre a pessoa ferida na berma do caminho, apesar de pertencer a uma tribo historicamente inimiga.
Vivemos numa sociedade democrática e com instituições e serviços para socorrer os cidadãos nas suas fragilidades. Mas isto não dispensa a nossa atenção às pessoas, cujas necessidades são de vária ordem, e nem sempre as instituições dão resposta. Respeitando a autonomia das respostas civis, sociais e culturais e também a liberdade das pessoas, temos de estar atentos a quem vive no nosso meio ou se cruza nos nossos caminhos, indo ao seu encontro, saudando-os e escutando-os, mesmo quando não entendemos a sua linguagem, para sermos outros bons samaritanos e ajudarmos as pessoas a caminhar, sempre na esperança de alcançar a meta, a realização plena das suas vidas.
Para os cristãos já começou a realização dessa esperança no Natal de Jesus, que celebraremos daqui a quatro semanas. Neste tempo do Advento e no Natal somos desafiados a caminhar, procurando fazer das nossas vidas um encontro com Deus, com os outros e com a natureza, num diálogo contínuo de amor, construindo assim uma história de amizade, até que Deus seja tudo em todos.
† António Vitalino,
Bispo de Beja - DEZ2014
Omissões e vocações
1. A culpa morreu solteira
Começo a minha nota desta semana por um dito frequente, mas pela negativa: a culpa não pode morrer solteira. Mas trata-se apenas da culpa do que fizemos mal ou também do que deveríamos fazer e não fizemos? Na verdade, ouvi esta semana alguém afirmar, diante de muitos notáveis da política, da economia, das empresas e da sociedade, de que somos também responsáveis pelo que não fizemos. Na confissão de culpas dos cristãos sempre se pediu perdão pelos pecados por pensamentos, palavras, obras e omissões. Por isso para quem assim se confessa pecador, nada de novo na afirmação feita perante notáveis. Mas na realidade isso raramente se põe em prática.
Sucedem-se os governos, mudam-se os responsáveis pela gestão dos serviços e empresas públicas, reconhecem-se erros cometidos ou falta de zelo, mas raramente alguém é chamado à responsabilidade. Por isso a culpa morre solteira e todos pagam por isso. Melhor dito, só não paga quem adiantou a sua recompensa imerecida. Assim não admira que muitos lutam pelo poder, pois, uma vez alcançado, já não precisam de se esforçar na luta pela realização do bem comum. Esta mentalidade não é de agora. Já na minha juventude havia muitas cunhas para o funcionalismo público devido à estabilidade e segurança do emprego. Num regime democrático, onde os governos e muitos serviços são sujeitos a sufrágio popular e concursos públicos, procuram-se arranjos rápidos e empregos para os amigos, sem critérios racionais e justos. Assim se vai criando uma sociedade arbitrária e do arranje-se quem puder.
Como inverter o caminho desta sociedade fundada no poder, no arranjinho, na corrupção? Temos de criar mecanismos baseados na verdade, na justiça, no amor ao bem comum. Os cristãos têm um imperativo de consciência que os leva a confessar as culpas e procurar emendar-se e reparar o mal feito. Este mês de novembro começou com a celebração de todos os santos, através dos quais ouvimos o apelo: sede santos porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo. E nele ouvimos a proclamação das bem-aventuranças: felizes os pobres, os que procuram a justiça e a paz, os que sofrem por amor do Reino dos Céus, porque será grande a sua recompensa. Faltam-nos testemunhas de santidade, para mudar o cenário da irresponsabilidade e da corrupção.
2. Mensageiros do Evangelho da alegria
É preciso criar uma mentalidade fundada na verdade, no amor ao próximo, na justiça, na responsabilidade pelo bem comum, mesmo que isso não traga vantagens pessoais, mas antes sofrimento e incompreensões. Se lermos a Bíblia e olharmos bem para o testemunho de vida de Jesus Cristo e dos Apóstolos, descobriremos vidas pautadas por valores e critérios do amor e da gratuidade, hoje muito esquecidos.
Quem os lembrará e tornará presentes pelo seu próprio estilo de vida? Os cristãos definem-se pelo seguimento e imitação de Cristo, até ao ponto de poderem exclamar com S. Paulo: Por Cristo, renunciei a todas as coisas e considerei tudo como lixo, para ganhar Cristo (Fil 3, 7-8).
Neste tempo do consumo egoísta, mais necessário se torna quem dê testemunho destes valores evangélicos. Mas só quem se deixa fascinar e apaixonar por Cristo, a pérola preciosa escondida aos olhos de muitos, é capaz de optar por uma vida consentânea com a de Cristo e viver com alegria a radicalidade do Evangelho das bem-aventuranças.
A semana de 9 a 16 de novembro é dedicada pela Igreja aos seminários, onde se formam os servidores da alegria do Evangelho, como diz o lema deste ano. Um discípulo de Cristo e muito menos um missionário do Evangelho não pode ser um triste e desiludido.
Por isso os seminários não podem educar pessoas sem ânimo, passivas e acomodadas. Os formadores nos seminários, apesar da escassez de seminaristas, não podem ser como mães-galinhas, protecionistas, sem exigências. O amor a Cristo e à humanidade tem de ser posto à prova, como o ouro no crisol. Jesus envia os seus apóstolos como ovelhas para o meio de lobos. Eles voltam alegres da missão e Jesus adverte-os para não se alegrarem pelos êxitos obtidos, mas pela certeza de que os seus nomes estão inscritos no Reino dos Céus. O cansaço da missão é compensado e superado pela alegria que anima o servidor do evangelho.
Muitas vezes, temos de nos recolher no silêncio da oração, confiantes no apelo do Mestre: Vinde a mim todos vós que andais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei... porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve (Mt 11, 28-30). Só quem vive a paixão por Cristo e pela humanidade, só quem sabe equilibrar o trabalho apostólico e a oração, experimenta a alegria de ser constituído servidor do Evangelho.
Olhando para o testemunho do Papa Francisco e de muitos missionários podemos sentir como é belo e necessário ao mundo este caminho iniciado no batismo, descoberto no chamamento para seguir Jesus e treinado ao longo dos anos de formação nos seminários. Por isso, nesta semana e de vez em quando ao longo do ano lembremos com gratidão os nossos seminaristas e os seus formadores, para que não falte ao mundo quem opta por ser testemunha e servidor da alegria do Evangelho.
Alegremo-nos também porque no dia 23 de novembro, nos Jerónimos, vai ser ordenado bispo aquele que me vem ajudar na missão e será o meu sucessor à frente desta diocese, D. João Marcos. Quem não for aos Jerónimos poderá no dia 30, às 16,00 horas, na igreja de Santa Maria, em Beja, participar na sua apresentação aos diocesanos.
Alegremo-nos ainda pelos três diáconos que vão ser ordenados no dia 8 de dezembro, na mesma igreja e à mesma hora. E rezemos pelos 3 seminaristas de Beja a estudar teologia em Évora e pelos dois candidatos ao seminário, a fazer o ano propedêutico em Faro. Oxalá todos venham a ser servidores do Evangelho da alegria.
† António Vitalino, Bispo de Beja
09/NOV2014
Mortos ou vivos?
1. O culto dos mortos
Estamos a chegar ao fim do mês de outubro, na tradição da Igreja conhecido como o mês do rosário, para entrarmos no mês de novembro, este conhecido como o mês dos finados. Embora o dia 1 seja dedicado a todos os santos, dia santo com obrigação de participar na missa, mas não feriado, um dos que a crise nos tirou, as pessoas sempre o aproveitaram para fazer as suas romagens aos cemitérios, onde jazem os seus entes queridos já falecidos, pois o dia a eles dedicado, o dia 2 de novembro, não é feriado nem dia santo. Este ano coincidem com o fim de semana e talvez ambos sejam aproveitados para a romagem aos cemitérios.
Na tradição cristã houve sempre um grande respeito pelos falecidos, pois o seu corpo inanimado é único e é a referência visível da pessoa que partiu. Embora hoje a Igreja católica aceite a cremação e até preveja uma bênção para esse ato, no entanto desde os princípios do cristianismo até aos nossos dias houve sempre um culto especial dos mortos. Recordemos as catacumbas no tempo do império romano e das perseguições aos cristãos e os sepultamentos nas igrejas, nos claustros dos conventos e nos adros das igrejas. Entre nós ficou famosa a revolução de Maria da Fonte, que se opunha ao sepultamento nos cemitérios, fora dos espaços de culto.
Estas mudanças vão contribuindo para uma profunda alteração da nossa relação com o sofrimento e a morte. Os idosos entregam-se aos lares, os doentes e moribundos aos hospitais e lares de cuidados continuados e os mortos são entregues às agências funerárias, aos tanatórios ou cemitérios em lugares retirados do normal convívio da sociedade. A pouco e pouco vamos perdendo a experiência da morte e do respeito e culto pelos mortos, o que vai provocando uma mudança cultural, como se a morte biológica não fizesse parte do sentido da nossa existência. Diz-se que os chineses não morrem. Qualquer dia dir-se-á o mesmo de nós, se não invertermos os nossos hábitos na relação com a morte biológica.
Nos tempos em que os falecidos eram velados nas casas onde viveram, a maior parte das vezes na grande família, as crianças começavam cedo a conviver com a fragilidade da vida, a doença e a dor, aprendendo a integrar a morte nas suas possibilidades de vida e de futuro.
Felizmente hoje temos os cuidados paliativos e não se justifica o suicídio assistido, que é outra forma de não aceitar a fragilidade do ser humano e não acreditar no ato de entrega ao criador ou naquilo que nos diz a fé cristã, de que a vida não acaba, apenas se transforma, ou, como diz S. Paulo, enquanto o ser visível vai acabando, vai-se formando o homem interior e invisível, faz-se a passagem do homem temporal para o eterno. Por isso a profissão de fé cristã termina com a afirmação da crença na ressurreição dos mortos, como Cristo, na vida eterna.
2. Os sistemas educativos em crise
Mas não é só a nossa relação com a morte e os falecidos que está em crise ou em mudança de paradigma. Também os sistemas educativos parecem estar mergulhados em profunda confusão de modelos, a começar pela família. Por motivos profissionais e económicos adia-se a maternidade e paternidade, até já se fala em congelar os óvulos e o esperma, para serem fecundados mais tarde, como se tudo fosse apenas um processo biológico, pondo de parte a importância dos fatores psicológicos e afetivos para a educação dos seres humanos.
A seguir vem a escola, que deveria ser uma ajuda aos pais e às crianças no processo da sua socialização e não apenas uma aprendizagem de conteúdos, cada vez mais na área da matemática e das ciências e menos na arte de pensar e se relacionar com pessoas da nossa cultura e de outras culturas linguísticas. Apenas o inglês, mais por motivos económicos que culturais, se salva nesta babel cultural.
A confusão torna-se mais gritante com a colocação dos professores, em que os critérios de humanidade e familiares pouco contam, mas principalmente as prioridades de carreira. Desafio as pessoas envolvidas, professores, sindicatos, assembleia da república e governo a fazerem um profundo estudo e diálogo da questão e só depois de tudo bem estudado e acordado, com programas informáticos experimentados e seguros, proceder às reformas necessárias do sistema educativo.
Ficou famoso o Maio de 68 com a contestação generalisada dos estudantes, não apenas da escola, mas também da sociedade. Antes que outra confusão aconteça temos de despertar para esse estudo profundo, a começar pelos políticos e outros responsáveis pela escola, universidades incluídas. A escola do livro único, do ensino unificado e exlusivamente académico estão ultrapassadas. As estruturas mentais e os interesses das pessoas e grupos são diversificados. Mas há alguns denominadores comuns que importa ter em conta e atender às diferentes necessidades da sociedade nacional e internacional, para orientar as áreas de ensino e de investigação do ensino superior.
Quando há problemas, criam-se comissões de estudo, entrega-se à judiciária ou à Procuradoria Geral da República para apurar responsabilidades. Por vezes isso significa simplesmente retirar as questões da participação pública e as conclusões e resultados desses estudos e investigações nunca se sabem. Com a educação não podemos fazer isso, pois interessa e diz respeito a todos. Qualquer comissão que se crie nesta área tem de ser mais para lançar perguntas e coligir as respostas em ordem ao futuro do nosso sistema educativo.
† António Vitalino, Bispo de Beja
27 de Outubro - 2014
Reanimar a família humana e eclesial
1. Futuro da família
Nestas últimas semanas a família andou na berlinda. Durante quinze dias o Sínodo extraordinário dos bispos em Roma, com cerca de 200 representantes de toda a Igreja Católica, debateram os problemas que afetam as famílias na atualidade, não apenas na sua relação com a Igreja, mas também com a sociedade e os diversos sistemas políticos. Mas a comunicação social salientou sobretudo questões periféricas, como a admissão aos sacramentos dos recasados depois de um casamento canónico e dos diversos tipos de uniões para além daquela que constitui o casamento católico, ou seja, a união de um homem e de uma mulher para constituir uma comunhão de vida.
O Papa Francisco pediu aos participantes para apresentarem os problemas reais que afetam as famílias e não belos discursos sobre as ideias de cada um acerca da família. Tratando-se de um Sínodo em dois tempos, que terminará em outubro de 2015, neste primeiro tempo interessava apresentar a realidade, em todas as suas facetas e problemáticas e sensibilizar a Igreja para o acolhimento de todos, sem aceção de pessoas ou exclusão de quem não vive de acordo com as normas jurídicas da Igreja no que concerne à família.
Apresentar caminhos de inclusão e não de rejeição é a missão da Igreja. Cristo traçou-nos metas e objetivos, mas deu-nos o exemplo do acolhimento, da misericórdia e do perdão. Praticar o evangelho da família na verdade e na caridade não é tarefa fácil e simples, que se pode delinear em princípios e normas universais e objetivas. Sem cair no relativismo de que tudo está certo, também não podemos apregoar uma rigidez insensível e aplicável em todas as situações na pastoral familiar.
Isto vai exigir muito dos pastores, em comunhão com o sucessor de Pedro, o Papa. Até à próxima sessão do Sínodo dos Bispos, em outubro de 2015, teremos que dialogar muito e sobretudo afinar as nossas sensibilidades e métodos na abordagem dos problemas que afetam as famílias. Mais que de normas precisamos de atenção mais concreta às pessoas que constituem a família e um coração sensível e acolhedor de todos na comunhão da Igreja, convictos de que sem família não há futuro para a sociedade e a Igreja.
2. A diocese de Beja prepara mudanças
Também na diocese de Beja temos um longo caminho a percorrer, para ajudar a construir a família eclesial. O acolhimento e inclusão das diversas sensibilidades e dons, para que todos contribuam para a construção da família humana, são tarefa e missão sempre a iniciar e recomeçar através de múltiplas atividades, seja na área da formação, da oração e do culto e principalmente na prática da caridade apostólica. Crescer na fé e na prática da caridade é o lema deste ano pastoral e desempre. Para isso precisamos de novos impulsos, pois todos corremos o perigo de estagnar e quem pára, recua.
Neste sentido felicito os organizadores de vários acontecimentos no último fim de semana: o centro diocesano missionário com a jornada diocesana das missões, em Aljustrel, a mensagem de Fátima com a sua assembleia diocesana, o caminho neo-catecumenal com o convívio das comunidades em Milfontes, etc.
Mas, numa diocese tão dispersa e com pouca percentagem de católicos comprometidos em movimentos e serviços, temos de coordenar melhor as nossas ações, para evitar uma maior dispersão. Felicito os organizadores da jornada missionária diocesana, que se empenharam em concretizar um programa rico de formação e animação, em Aljustrel. Muitas paróquias e movimentos estiveram ausentes e perderam uma grande oportunidade de se formar, conviver, divertir e orar. Espero que de futuro orientemos melhor as nossas agendas, pois o Dia Mundial das Missões só acontece uma vez por ano e toca uma dimensão essencial da vida da Igreja.
Com a vinda do Bispo Coadjutor, D. João Marcos, esperamos poder dar um forte impulso na construção da família diocesana. Neste fim de semana já esteve entre nós, para combinarmos alguns pormenores do início da sua missão como Bispo Coadjutor, e que num futuro próximo será o meu sucessor. Vai ser ordenado bispo na igreja dos Jerónimos, em Lisboa, no dia 23 de novembro, pelas 16,00 horas. Espero que uma forte delegação da diocese possa participar na ordenação do nosso futuro bispo, clero e leigos. Na semana seguinte virá para Beja e será apresentado solenemente à diocese na celebração do primeiro domingo do Advento, no dia 30 de novembro, pelas 17,00 horas, na igreja de Santa Maria da Feira.
Por este motivo e pelo atraso nas respostas de vários arciprestados sobre as reflexões sinodais, decidimos adiar a próxima assembleia sinodal, prevista para o dia 8 de novembro, para uma data em que já possamos contar com a sua presença, que nos ajudará a crescer na fé e na prática da caridade, citando o lema deste ano pastoral, sobretudo com o seu exemplo e sensibilidade de artista. Atendendo a muitos pedidos e após ver o seu local de residência, decidiu trazer com ele os seus pincéis de pintor, pois pela arte também se evangeliza. Entretanto continuamos a interceder por ele na nossa oração, preparando-nos para o acolher nesta família diocesana, sempre em construção.
† António Vitalino, Bispo de Beja
20 de Outubro de 2014
A família na pastoral da Igreja
1. Papel da família na sociedade e na Igreja
Diariamente somos confrontados com pessoas e grupos desajustados do meio em que vivem, que levantam problemas ambientais e de convivência social. Alguns vão parar aos estabelecimentos prisionais, a rebentar pelas costuras, excedendo largamente a sua capacidade física, para não falar das casas de reinserção, onde são acolhidos os delinquentes menores de idade. Embora as causas sejam múltiplas e diversas, no entanto poderemos facilmente encontrar alguns factores comuns em todos eles. Nesta breve nota vou apenas falar do papel da família, sempre a considerar nas problemáticas sociais e a ter em conta nos sistemas educativos e na ação da Igreja.
No dia 5 de outubro, em Portugal memória da implantação da República, começou em Roma um Sínodo Extraordinário sobre os desafios pastorais da família no contexto da evangelização, que foi precedido de um longo inquérito sobre a real situação da família em todas as dioceses do mundo, respondido por clérigos e leigos. O Papa Francisco, na homilia da Missa de abertura, disse aos participantes que não se tratava de fazer belos e inteligentes discursos sobre as suas ideias de família, mas de cuidar como pastores do bem da família, de acordo com o sonho e o desígnio de amor de Deus por ela.
Com os sinodais também nós refletimos sobre a família e, partindo das realidades que conhecemos e do sonho de Deus sobre a felicidade dos membros da família, queremos apontar algumas metas possíveis em ordem ao maior bem de todos.
Em primeiro lugar, gostaria de focar o sonho dos próprios noivos quando decidem unir as suas vidas. Com certeza que se trata de um sonho de amor, que pode encontrar muitos obstáculos na sua realização. Diz-se que a paixão cega, mas sem encantamento e paixão também não é possível unir a vida de duas pessoas. Por isso o tempo de namoro e a ajuda de casais e famílias experientes é importante, para que não fique frustrado um projeto tão nobre e significativo para o casal e a sociedade.
Da parte da Igreja é necessário ter equipas de casais, que ajudem a concretizar este projeto. Temos os Centros de Preparação para o Matrimónio (CPM), em vários lados (na nossa diocese, em Beja, Moura e Santiago do Cacém), que devem ser apoiados por todos nós, pois desempenham um papel muito importante na pastoral da família. É preciso divulgar bem os cursos programados ao longo do ano e não condescender com pressas de alguns noivos, pois a pressa é sempre má conselheira.
Em segundo lugar, temos de descobrir estratégias de acompanhamento dos casais, para que a paixão se transforme em amor autêntico, sempre preocupado com o bem do outro, e os obstáculos que vão aparecendo, uns vindos de dentro outros de fora, possam ser superados.
Em alguns lados já se constituiram gabinetes de apoio famíliar, com casais experientes em várias áreas. Para eles devemos orientar os casais e famílias com sinais de alguma crise, para que possam ser ajudados. Isto exige muita atenção de todos os agentes pastorais, para não deixar isso apenas aos advogados e psicólogos.
2. Sínodo sobre a família e os recasados
Temos de ser criativos e persistentes na evangelização, na inclusão de todas as gerações na sociedade e na ação da Igreja, pois costumes e ambientes arraigados não se mudam numa só geração. Embora todos sejamos muito ciosos da nossa liberdade individual, sabemos que as pessoas apenas se realizam no encontro de várias liberdades para buscar e promover o bem uns dos outros. Se ninguém deve viver para si mesmo, muito menos na família.
Infelizmente, nem sempre somos eficazes na preparação dos matrimónios nem no acompanhamento dos casais e das famílias. Cada vez mais nos deparamos com pessoas que já tentaram refazer o seu casamento uma ou mais vezes. Como proceder?
Sabemos que Deus não faz aceção de pessoas nem quer excluir ninguém do seu projeto de amor e de salvação. Também a Igreja deve assumir a mesma atitude. Mas como? Não pode ser tudo igual. Dizia Tolstoi que as famílias felizes são todas iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Isto quer dizer que na nossa ação pastoral não podemos tratar todos da mesma maneira. Não se trata apenas de excluir os recasados da Comunhão e da missão de padrinhos. Há muita mais pastoral da Igreja para além da Comunhão e do Batismo.
A riqueza da graça de Deus, do seu amor salvífico, não se confina só a isso. O mesmo podemos dizer da missão da Igreja e do papel dos batizados na comunhão da Igreja. Os batizados recasados não são excluídos da Igreja nem estão excomungados. Continuam a ser fiéis que Deus quer salvar através da Igreja. Como proceder pastoralmente com estes fiéis?
Também nós aguardamos inspiração deste Sínodo, para enriquecer a nossa ação junto destes casais e destas famílias.
† António Vitalino, Bispo de Beja
07 Out2014
Convivência de gerações
1. Inclusão das gerações
No dia 28 de setembro o Papa Francisco convidou os avós a estar com ele, para celebrar o dia a eles dedicado, dizendo que também se incluia no seu número. Entre os convidados estava o Papa emérito, Bento XVI, a quem o Papa saudou com muito carinho, dizendo que sentia a sua presença no Vaticano como tendo em casa o avô sábio. Foi sobretudo emocionante o testemunho de dois idosos do Iraque, contando a brutalidade da guerra, o assassínio da família e a perda de todos os seus bens.
Foi mais um gesto do Papa Francisco, alertando para o valor e a dignidade da pessoa idosa, hoje muitas vezes tratada como algo descartável, esquecida pelos familiares mais novos nos hospitais, nas casas e nos lares, que devem ser casas e não prisões. Assim se perde a memória e as raízes da nossa história e se hipoteca o futuro da sociedade.
No dia 27 celebrámos o Dia Diocesano, com o qual queremos dar um forte impulso ao arranque do ano pastoral. Na nota de abertura do anuário, uma breve introdução ao plano pastoral, pedia a oração pela nomeação do Bispo Coadjutor, que virá a ser o meu sucessor na diocese.
A esse propósito alguém me perguntou, qual seria o meu papel quando o Coadjutor se tornasse o bispo diocesano. Respondi como escrevi na nota: importa que ele cresça e eu diminua, acrescentando e depois desapareça. Ao que o meu interlocutor respondeu: não deixaremos que desapareça, pois manteve consigo o seu antecessor, D. Manuel Falcão e tratou-o muito bem.
Embora eu saiba que nem todos somos iguais e santos como era D. Manuel Falcão, uma bênção para mim e a diocese, no entanto percebi que há muitas pessoas a compreender a importância dos mais velhos na nossa Igreja e na sociedade e avaliam a nossa missão também a partir do modo como tratamos os mais idosos.
Também nisto se verificou a verdade da expressão do Papa: sentia a segurança de ter em casa um avô sábio, experiente e confidente.
Todos, a começar por mim, temos de ajudar as nossas comunidades a integrar os idosos na ação apostólica, presbíteros incluídos, não os atirando para um lar ou residência sacerdotal, sem qualquer função na sociedade e na Igreja.
Foi particularmente comovente o testemunho humilde do Cónego Aparício, um dos presbíteros mais significativos na história da nossa diocese, que deixou uma das paróquias mais importantes da cidade de Beja, para assumir a paroquialidade de uma pequena aldeia nas imediações de Beja, a dois meses de completar oitenta anos de vida. Isto é concretizar aquilo que o Papa Francisco chama ir até às periferias geográficas e existenciais, para aí anunciar a boa nova do Evangelho e incluir nesta missão a sabedoria dos mais idosos.
2. Construção de comunidades inclusivas
Na semana passada escrevi que iria continuar as minhas reflexões sobre a construção de comunidades eclesiais abertas e significativas. Na brevidade desta nota quero indicar mais um aspeto desse processo, apontando o gesto papal e as experiências recentes na minha atividade episcopal.
Fez parte da agenda do Dia Diocesano a apresentação dos resultados da prática dominical de acordo com o recenseamento feito a 16 e 17 de novembro de 2013. A partir da constatação da baixa presença nas missas dominicais das pessoas entre os 15 e os 39 anos, perguntava-se aos representantes dos seis arciprestados como proceder para subir a percentagem da sua participação nas eucaristias dominicais, assim como a das pessoas do sexo masculino.
As respostas foram ricas e variadas. É preciso continuar a reflexão e encontrar medidas concretas de ação apostólica nas paróquias e movimentos. Avanço apenas uma de caráter geral. No Alentejo há uma mentalidade e tradição de que a Igreja e a religião são para as crianças e as mulheres, embora os homens respeitem a Igreja e sejam religiosos.
A minha sugestão é, para além de uma profunda conversão de todos nós, a mudança no estilo de evangelização e de colaboração daqueles que estão à frente das comunidades e dos que delas fazem parte, sobretudo crianças, mulheres e idosos. Ou seja, trabalhar mais a partir da família e incluir na nossa prática pastoral todas as gerações, com especial atenção para os mais frágeis, crianças e idosos. Encontrar modos de envolver mais a família na catequese, na celebração dos sacramentos, na vivência da caridade, embora compreendendo a menor disponibilidade das pessoas que estão na vida ativa.
Recordo-me do trabalho paroquial da minha juventude sacerdotal. Como as famílias foram interpeladas quando organizamos melhor a catequese paroquial, criamos grupos musicais com os jovens que andavam pelas ruas de viola às costas e se reuniam em pequenos grupos, da visita aos idosos e doentes que ficavam em casa enquanto os filhos saíam de manhã cedo para o trabalho e regressavam a casa muito tarde.
Isto foi chamando a atenção das pessoas na vida ativa, a ponto de a encarregada da catequese no Patriarcado, chamada para fazer a preparação das famílias para a festa da primeira comunhão das crianças, ter exclamado admirada: até que enfim encontro uma paróquia onde as crianças têm pais e não somente mães.
Temos de ser criativos e persistentes na evangelização, na inclusão de todas as gerações na sociedade e na ação da Igreja, pois costumes e ambientes arraigados não se mudam numa só geração.
† António Vitalino, Bispo de Beja
29 Setembro2014
Coesão na diversidade
1. Convivência na diferença
A diferença incomoda muita gente. Ao longo da história da humanidade tem havido muitas guerras e discórdias por causa das diferenças entre pessoas, raças, cores, sistemas políticos e ideológicos, religiões, etc., para não mencionar a ambição do poder, do domínio e do ter.
No domingo passado o Papa Francisco visitou um pequeno país onde prima a diferença em todos os sentidos, mas as pessoas vivem em paz, procuram o consenso em vista do bem comum. Estou-me a referir à Albânia, um país pequeno, com a superfície do Alentejo, mas montanhoso, onde católicos, muçulmanos, ortodoxos e ateus convivem pacíficamente.
No mesmo dia realizou-se um referendo na Escócia sobre a independência ou não em relação ao Reino Unido. E na Catalunha continua acesa a discussão sobre a sua separação da Espanha, na Madeira há vozes de maior autonomia em relação ao Continente, para não falar dos horrores perpetrados pelos que querem construir um estado islâmico, só de fiéis do Islão.
Enquanto o movimento da construção de uma comunidade europeia alargada, democrática, forte, com igualdade de direitos e deveres de todos os cidadãos parecia irreversível, surgem outras tendências que parecem contrárias à primeira, nascida dos escombros da segunda guerra mundial, para que isso nunca mais acontecesse.
Como interpretar estes novos acontecimentos? Serão ou não obstáculo à construção da comunidade europeia? Serão manifestações de egoísmo nacionalista ou compatíveis com um futuro de paz na Europa? Vão acentuar-se as desigualdades entre países e regiões ricas e pobres ou serão factores de progresso e crescimento para todos? Estas e muitas outras interrogações vêem à nossa mente, para as quais não encontramos respostas, mas não podemos cruzar os braços como espectadores impassíveis.
Neste ambiente de tendências contraditórias é importante apontar algum bom exemplo. Olhando para a Albânia, para o seu povo, pobre, jovem, unido apesar das diferenças étnicas e religiosas, sentimos que não é a riqueza nem a diversidade a causa da coesão desse povo.
Depois de uma longa ditadura do comunismo ateu militante, com muitos mártires da fé e das convicções democráticas, o povo albanês descobriu o valor da liberdade e da fraternidade, vivendo a sua identidade étnica e religiosa no respeito pela diversidade dos credos de cada um. O ter e o poder afastam as pessoas umas das outras e criam invejas, rivalidades e desigualdades.
Este modelo de convivência pacífica na diferença e no respeito pelas convicções e credos de cada pessoa, famílias e comunidades, poderá ajudar-nos a construir uma Europa das pessoas e povos diferentes, mas iguais na dignidade da pessoa humana.
2. Construção de comunidades abertas
Estamos a arrancar um novo ano pastoral na diocese de Beja. As escolas já abriram as portas, embora ainda com muitas falhas na colocação de professores e no encerramento de escolas com menos de 21 alunos nas aldeias. Também os tribunais se tornaram mais distantes e não apenas pela avaria no sistema informático. Espero que na vida da igreja diocesana não aconteça o mesmo, embora saiba que também temos muitas fragilidades.
No entanto temos os meios da medicina espiritual ao nosso alcance: a participação de todos os batizados na construção das nossas comunidades locais, com o tempo e as capacidades de que estamos dotados; a compreensão, atenção e reconciliação entre todos os membros desta igreja e sobretudo a abertura àqueles que fazem parte do nosso meio, aldeias e cidades, mas não frequentam diretamente os nossos locais de culto.
Como conseguir criar comunidades fraternas e atentas a todos os que vivem ao nosso lado? Aqui reside a criatividade pastoral, não apenas do clero, mas de todos os colaboradores na missão.
Como convocamos e convidamos as pessoas para esta missão, seja para os conselhos económicos e pastorais das paróquias, seja para as direções dos centros sociais, seja para a formação de crianças e adultos, seja para os diferentes ministérios na celebração da fé (leitores, cantores, acólitos, ministros extraordinários da comunhão, pessoas para o acolhimento, visitadores de doentes e pobres), etc?
Os métodos podem ser diferentes, mas se não atingimos os objetivos pretendidos, temos de ver onde falhamos e talvez mudar. Não empurrar as dificuldades para os outros, mas estar conscientes de que o maior obstáculo pode estar em nós mesmos. Este é o caminho para a mudança, partindo duma revisão de vida em que impera a criatividade da caridade.
Outros passos teremos de dar para construir pelo menos núcleos, que são fermento de comunidades fraternas, abertas e inclusivas ao modo de Jesus Cristo, que disse: minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática.
Sobre isso poderemos refletir noutra altura, agradecendo sugestões, para as partilhar em benefício de todos.
† António Vitalino, Bispo de Beja,
23/SET/2014
Inclusão dos frágeis
1. Dimensão social da evangelização
Na semana passada tiveram lugar em Fátima as Jornadas anuais da Pastoral Social, desta vez sob o tema da dimensão social da evangelização, aprofundando e descrevendo concretizações do quarto capítulo da Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, que tem por título esse preciso tema. Foram comunicações interessantes, que nos colocaram muitas interrogações sobre a qualidade da nossa fé e apostolado. Mas creio que estes números do documento papal tocam os fundamentos da missão da Igreja, porque nos apresentam a originalidade da vida de Cristo e do seu Evangelho.
Na Sinagoga de Nazaré Jesus apresentou a missão do Messias, que era Ele próprio, repetindo a profecia de Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.»(Lc 4, 18-19).
Creio que ninguém tem dúvidas acerca do sentido destas palavras e de como Jesus as cumpriu na sua pessoa e na sua vida. A continuação desta missão no tempo e no espaço, através da história e do universo, foi confiada aos apóstolos e discípulos de todos os tempos e lugares. Estamos conscientes das suas exigências e da debilidade dos discípulos. Mas não podemos desculpar-nos com falsa apologética ou malabarismos exegéticos. Por isso todos os discípulos têm obrigação de fazer o exame de consciência, bater com a mão no peito por causa dos seus pecados, por pensamentos, palavras, acções ou omissões e aperfeiçoar o seu modo de seguir o Mestre e cumprir a missão que lhes foi confiada.
A fé sem obras é morta, diz o apóstolo S. Tiago. Mas também as obras sem fé, sem a confiança no Senhor da Messe e a disponibilidade em segui-Lo, amando-nos uns aos outros como Ele nos amou, fazendo uns aos outros como Ele fez, pode cair num puro activismo, que atribui tudo ao discípulo, como se pudesse mudar o mundo e resolver todos os seus problemas apenas a partir de si mesmo e das suas obras. Isto seria orgulho da nossa parte e mentira acerca da nossa dignidade e dos outros. Não somos máquinas ou activistas de alguma ideologia, mas filhos de Deus e irmãos uns dos outros, chamados a olhar e cuidar uns dos outros.
Em poucas palavras o Papa Francisco o diz no início do capítulo IV: Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. Ora isto tem repercussões comunitárias e sociais, como o Papa explica em todo este capítulo, que acentua muitas dimensões da vida e missão da Igreja, muitas delas esquecidas ou até mesmo deturpadas. Conscientes de todas as dimensões da nossa vida cristã e da vocação a que fomos chamados, temos de exclamar como S. Paulo:Ai de mim se não evangelizar.
2. Colocar os frágeis no centro
Todos somos tentados em pensar e agir como senhores e não como servos dos outros, sobretudo dos mais pobres, como se estes apenas fossem sujeitos passivos das nossas boas acções e nada nos tivessem a dar. Recordo os testemunhos de Jean Vanier, fundador da Arca, ou seja, de comunidades de e com deficientes, em que ele nos diz quanto recebe destes, muito mais do que aquilo que lhes dá. O mesmo podemos ler nos muitos livros de Henri Nouwen, um teólogo e psicólogo holandês, que mudou a sua vida de conferencista famoso quando se encontrou com as comunidades da Arca e nelas viveu. Muito conhecido é o seu livro O Regresso do Filho Pródigo.
Isto acentua o Papa Francisco na Exortação que estamos a comentar. Nos números 186 a 216 ele explica como deve ser a inclusão social dos pobres, que devem ser protagonistas da missão da Igreja. Olhando para Jesus Cristo, para o seu amor preferencial pelos pobres e pecadores, muito temos a aprender e mudar na nossa evangelização. Quando isto começar a acontecer, então poderemos falar da primavera da Igreja, tão sonhada pelo bom Papa S. João XXIII e que o Concílio Vaticano II e os Papas seus sucessores procuraram implementar na vida da Igreja. É isto também que eu sonho e convido todos a sonhar comigo, a arregaçar as mangas e organizar a diocese, as paróquias e serviços neste sentido.
Ao iniciarmos um novo ano pastoral, em que desejamos acentuar a dimensão da caridade na vida da Igreja, agradeço a todos os que com generosidade se esforçam por colaborar na nobre e exigente missão da Igreja diocesana, agora envolvida num Sínodo e exorto todos os colaboradores a unirem esforços no sentido de uma evangelização mais integral das comunidades, famílias e ambientes da nossa diocese, tendo em conta a grave crise de fé, de valores e de falta de trabalho que nos afecta.
Temos um longo caminho a percorrer, mas não desanimamos. Assim Deus nos ajude e Nossa Senhora das Dores, dia em que escrevo esta nota, interceda por nós. Na próxima semana, dia 22, teremos o encontro do clero. Vamos nomear novos arciprestes, escolher um novo Conselho Presbiteral, decidir algumas orientações e acções para o próximo ano pastoral e apresentá-las à diocese no Dia Diocesano, a 27 do corrente mês, altura em que nomearemos a nova Direcção da Caritas Diocesana. Estamos gratos a todos aqueles que animaram a diocese na área sociocaritativa durante estes últimos anos e pedimos a bênção de Deus e colaboração dos diocesanos com a nova equipa.
† António Vitalino, Bispo de Beja
15 de Setembro/2014
Reconciliar e perdoar
1. Sentinelas da paz
Semanas atrás o Papa Francisco visitou duas regiões do planeta que desde há muitos anos vivem em permanente tensão, onde, de vez em quando, rebenta um conflito armado e há corte de relações. Refiro-me ao Médio Oriente, sobretudo Israel e Palestina e Extremo Oriente, a Coreia. Essas visitas, repletas de belos discursos e gestos simbólicos parecem ter sido inúteis. O Papa rotulou a situação mundial de início de uma guerra mundial aos pedaços. Para quem viveu os horrores da segunda guerra mundial e sofreu as suas terríveis consequências, deveria tentar tudo para que isso não se tornasse verdade.
Na missa deste último domingo as leituras bíblicas lembraram a missão dos cristãos e da Igreja a este respeito. O profeta Ezequiel dizia que devemos ser sentinelas que advertem os pecadores e transgressores da ordem, pois se não o fizermos somos corresponsáveis pelo mal que acontece e chamados a sofrer também o castigo.
Ao meditar este trecho bíblico, adveio-me o pensamento da inutilidade de tantas esforços e tentativas da Igreja e das organizações internacionais para estabelecer a paz entre os povos e dentro de alguns países profundamente divididos e envolvidos em guerras civis. Será que vamos às causas dos conflitos? Serão inúteis todos os esforços?
A Fundação Calouste Gulbenkian concedeu o prémio deste ano de 2014 a uma organização católica conhecida por Comunidade Santo Egídio, movimento nascido há 50 anos, durante o Concílio Vaticano II, no bairro romano de Trastevere e que hoje está espalhado em mais de 70 países, com cerca de 60 mil leigos empenhados em promover o diálogo ecuménico e em apoiar pessoas sem abrigo, idosos, crianças, presidiários, vítimas de guerras e imigrantes, assim como em mediar conflitos através do diálogo, da oração e do testemunho de vida comunitário.
É bem conhecido o seu papel na reconciliação dos movimentos armados na guerra civil em Moçambique. Divulgando os valores e princípios de um novo humanismo, esta comunidade acredita que a paz é possível. Aqui está uma maneira de ser sentinela da paz e da reconciliação entre os povos.
Por isso não desiste de acreditar e intervir em situações de conflito. Assim também o Papa Francisco. E nós, como vivemos e agimos face a tantas situações de conflito, a começar pelas nossas famílias e comunidades cristãs? As leituras deste domingo deram-nos matéria para alimentar as nossas convicções e actividades ao longo do ano e da vida. Na carta aos Romanos S. Paulo diz-nos que não devemos ficar a dever nada a ninguém, a não ser o amor de uns para com os outros, no qual consiste o pleno cumprimento dos mandamentos.
E nós, nas empresas, na sociedade, no Estado devemos tantos justos salários e remunerações, sinal de que o amor ao próximo e a justiça andam muito espezinhados.
Mesmo dentro das comunidades cristãs o evangelho de S. Mateus aponta-nos como devemos resolver os nossos conflitos, apenas desistindo quando o prevaricador não quer dar ouvidos a ninguém. Muitas vezes tornamos impossível o diálogo, começando por não ouvir o próprio nem ninguém. Assim é impossível o ministério da reconciliação.
2. Renovar os métodos da nossa pastoral
No sábado, de tarde, reuni com cristãos comprometidos vindos de todos os cantos da nossa diocese, em ordem a iniciar uma acção de formação para os qualificar melhor para a missão da Igreja. Temos de ser criativos na formação e acção dos nossos colaboradores. Pena que muitas vezes não disponibilizamos o nosso tempo para esta qualificação nem encontramos os meios mais adequados para o conseguir. Mas desistir é pecado.
Seremos responsabilizados pela omissão de sermos sentinelas e promotores de comunidades que se empenham na reconciliação das pessoas, das famílias e da sociedade. Muitas vezes ficamos no lamento pessimista de que tudo anda mal. Vemos o argueiro na vista dos outros, julgando-os precipitadamente e estamos cegos para as imensas possibilidades de nos convertermos em profetas da esperança, do amor, da justiça e da paz.
A grande renovação da Igreja, isto é, de nós, cristãos baptizados e dos frequentadores dos nossos templos, tem de começar pela conversão e renovação pessoal das nossas convicções e atitudes. E, a seguir, estarmos atentos a quem manifesta vontade em caminhar, mas se encontra perplexo, com dúvidas, só e desanimado. É preciso escutar, acompanhar, perguntar sobre as razões profundas do desânimo, iluminar os companheiros de caminho a partir da nossa fé e experiência e reconduzi-los à alegria da comunidade, que celebra e vive a realidade de Cristo ressuscitado. Isto nos mostra o trecho do evangelho de S. Lucas, cap. 24, conhecido por história dos discípulos de Emaús.
Este mesmo método de acção segue o Papa Francisco e na sua grande Exortação Apostólica Alegria do Evangelho propõe para toda a Igreja, cuja leitura e reflexão recomendo, não apenas alguns números semanalmente, como o faz o Notícias de Beja, mas como livro que se começa a ler sem intercalar muitos outros. Por hoje fico-me por aqui. Na nossa caminhada sinodal voltaremos ao assunto.
† António Vitalino, Bispo de Beja,
08 de Setembro de 2014
Recomeçar sem desvarios
1. Verão sem calor
Muita gente gosta do habitual calor de verão, porque se refresca nas águas do mar e dos rios, não tendo de sofrer o suor das ruas do interior, nas ocupações e trabalhos do dia a dia. Pois este ano aconteceu o contrário. Muita gente não aguentou o vento frio e regressou a casa antes do termo das férias. As nossas aldeias puderam celebrar as suas festas com maior participação das suas gentes
Os políticos e comentadores deram-nos algum descanso mental e as televisões andaram de terra em terra, em múltiplos festivais e concursos, dando quase a impressão que a crise e os problemas tinham chegado ao fim. Mas isso foi só aparência.
Pois, na verdade, a confusão e o descalabro do nosso sistema económico e financeiro continuam a surpreender políticos e analistas, como se verificou com o recente colapso do grupo Espírito Santo, que levou à criação de um novo banco, apelidado de bom, à custa de uma injecção enorme de dinheiros emprestados, e de um banco mau, que ficou com os créditos mal parados e os negócios fraudulentos e obscuros. Nem os mais entendidos sabem onde tudo isto vai parar. Oxalá os políticos de boa fé não tentem tapar a mente dos portugueses à caça dos votos nas próximas eleições.
Apesar da fuga de capitais, da impunidade aparente dos envolvidos nas trapalhadas económicas e financeiras, ainda há quem parece não ser afectado pela crise. O futebol continua a investir ou gastar milhões em negócios de jogadores e os dérbis enchem as bancadas dos grandes estádios. Outrora como hoje, o futebol parece fazer esquecer os reais problemas do país e das famílias.
No mês de Agosto as nossas aldeias encheram-se de festa e de pessoas de todas as idades, enquanto nos restantes meses do ano ficam quase desertas, sem a alegria das crianças e dos jovens, pois muitos casais novos e jovens emigraram para países com economias mais florescentes e carentes de mão de obra.
Na peregrinação a Fátima dos dias 12 e 13 de Agosto, muito frequentada por emigrantes, o presidente da celebração, D. António Francisco, bispo do Porto, dizia que a falta de trabalho desumaniza e coloca em perigo o futuro de um país. Por isso afirmava quePortugal não pode esquecer que sem os emigrantes de ontem não era o país que hoje é e sem os emigrantes de hoje não consegue vencer a crise que tem vivido.
2. Recomeçar unidade e com visão de futuro
No mês de setembro tudo tem de recomeçar, para não hipotecar o futuro do país e das instituições. Temos todos de arregaçar as mangas, coração em Deus e mãos ao trabalho, como se expressava Mons. Alves Brás, fundador das Cooperadoras da Família, que desde 1966 trabalham na Casa episcopal.
Também na Igreja, de acordo com a sua missão, isso deve acontecer. Mas qual é essa missão, quem e como se realiza?
Todos os anos, depois das férias escolares e das empresas, recomeçamos o exercício da nossa missão. Não apenas clero, mas todos os baptizados que querem viver de acordo com a sua dignidade. Esta desenvolve-se quando procuramos partilhar o que somos com outras pessoas. Mas fazemo-lo de acordo com algum plano definido e proposto pelos responsáveis de cada diocese e comunidade. Não somos macacos de imitação ou papagaios.
Temos as nossas convicções profundas, a nossa fé, proveniente do amor que o Espírito de Deus derramou nos nossos corações. De acordo com isso, tendo em conta os sinais dos tempos e as necessidades daqueles com quem vivemos, traçamos os nossos planos e definimos os programas, devidamente calendarizados, para, ao longo do ano, sabermos em que pontos devemos insistir.
A diocese de Beja, a realizar um sínodo, quer envolver todos os baptizados na responsabilidade missionária. Neste novo ano pastoral queremos reavivar a nossa adesão a Jesus Cristo e reanimar as nossas relações interpessoais e intercomunitárias. Por isso insistiremos no conhecimento de Jesus Cristo e da sua mensagem e aprofundaremos o percurso da iniciação cristã dos baptizados.
Um passo deste caminho de renovação é a criação da unidade pastoral de três paróquias da cidade de Beja: Santiago, Santa Maria e S. João Batista, com três párocos, sendo um deles o moderador da equipa, para que a Igreja seja de facto mistério de comunhão e participação, sinal da unidade para que toda a humanidade é chamada a caminhar.
Como isso se fará, está a ser refletido por várias pessoas, que farão uma apresentação das conclusões a que chegaram no encontro do clero, a 22 de Setembro e no Dia Diocesano, a 27 do mesmo mês. Desde já agradecemos sugestões, para que o nosso caminho como igreja diocesana seja cada vez mais sinodal: coeso e fruto da colaboração de todos.
Bom recomeço do ano em todas as dimensões da nossa vida pessoal, social e religiosa.
† António Vitalino, Bispo de Beja
02 de Setembro de 2014
Missão e Vocação
Chamados do e para o povo
1. Partir de Cristo para as periferias
Começa o mês de Dezembro e também o ano litúrgico com o Advento. O fim do ano civil está à porta. No hemisfério norte temos o inverno e no sul, o verão. Na mudança de estação acontece o Natal, para os cristãos memória do nascimento de Jesus Cristo. Para toda a humanidade uma data significativa pelo peso que os países do mediterrâneo tiveram na evolução da civilização mundial, apesar da diversidade cultural e religiosa. Mas a que se deveu esta evolução? Sem querer exaltar o meu credo cristão, vou realçar nesta nota dois factores importantes, senão decisivos, para isto assim acontecer.
Primeiro, o acontecimento histórico da pessoa de Jesus Cristo, nascido na plenitude dos tempos de acordo com a revelação cristã, embora nem o povo das suas origens biológicas nem a terra onde nasceu estivessem no centro da civilização mediterrânica, pois o centro político era Roma e não Belém ou Jerusalém e o centro cultural era Atenas. Mas a narrativa da sua vida e mensagem foram uma novidade nunca vista. Não foram o poder económico ou politico nem muito menos o fruir dos prazeres da natureza que orientaram a sua vida e mensagem, mas o remar contra a corrente e a paixão pelo bem da humanidade até ao dom da própria vida.
Mais cedo ou mais tarde, tudo teria terminado, perdido a sua força exemplar, se tudo tivesse ficado pela morte prematura e violenta de Jesus. E passo ao segundo factor decisivo, o chamamento de alguns discípulos, que viram, ouviram e tocaram a pessoa de Jesus, mas também foram testemunhas da sua ressurreição, que culminou com a vinda do Espírito prometido e os tornou testemunhas intrépidas, prontas a obedecer antes a Deus que aos homens, sem por isso serem revolucionários ou terroristas, dispostos a imitar o Mestre pelo dom da vida, pela fé em Jesus e o amor ao próximo.
Embora nestes dois mil anos após a morte de Jesus nem todos os que se disseram ou dizem seus discípulos o foram de verdade, no entanto, sempre, em todas as épocas e lugares, houve e há discípulos a sério e à letra do Mestre Jesus. Aponto apenas para o atual sucessor do apóstolo Pedro, o Papa Francisco, que, apesar da idade, tem um discurso e gestos que chamam a atenção para os simples e os poderosos deste mundo.
Na mais recente viagem a três países de África, Quénia, Uganda e República Centro-africana, como há poucas semanas a países pobres e violentos da América Latina, ele, sem medo do terrorismo ou das guerrilhas, foi mostrar-se solidário para com os pobres e apelar à reconciliação dos povos e das religiões, para que cesse a exploração da natureza e dos pobres e se fomente o encontro e diálogo entre as religiões, agora muçulmanos e cristãos e entre países pobres e ricos. No Quénia, a 2 de abril do corrente ano, radicais islâmicos mataram 147 estudantes cristãos no campus de uma universidade. A resposta dos cristãos não é o apelo à violência, que nunca é solução, mas à reconciliação pelo encontro, o diálogo e o respeito mútuo. Há lugar para todos.
2. Chamados do povo para o servir
No dia 8 de dezembro, solenidade da Imaculada Conceição, padroeira e rainha de Portugal, data em que o Papa abre a Porta Santa da Basílica de S. Pedro e dá início ao Ano Jubilar da Misericórdia, em Beja ordenamos seis presbíteros, que há vários anos estão a discernir a sua vocação e a formar-se entre nós, mas não têm as suas raízes familiares no Alentejo. Três vieram do Brasil, membros do Instituto de vida consagrada Milícia de Cristo. Os seus nomes são Adriano, Adenilson e Diogo. Dos outros três, um veio de Lamego, o Amadeu, outro de Lisboa, o Luís e outro da Nigéria, o Godfrey. De origens diferentes, chamados do meio do povo, não para ser servidos, mas para ser enviados em serviço do povo, um serviço de alta qualidade, pois não possuem prata ou ouro, mas o Espírito de Jesus, que oferece a sua vida pelo povo, para que este tenha vida e a tenha em abundância (cf At 3,6).
Esta qualidade de vida restitui a todos os que os recebem a dignidade de filhos de Deus e irmãos uns dos outros. E não realizam esta missão como pessoas desesperadas, sem alternativas de vida, amargas, violentas, mas com alegria, preferindo antes sofrer que fazer sofrer, procurando realizar nas suas vidas o que Jesus proclama nas bem-aventuranças: Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu. Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu; pois também assim perseguiram os profetas que vos precederam (Mt 5, 8-12).
A diocese de Beja alegra-se com este dom precioso da vocação sacerdotal destes jovens, felicita as suas famílias e pede a Deus que esta meia dúzia de discípulos de Jesus, chamados do meio do povo por intermédio da Igreja de Beja, se tornem ministros da misericórdia de Deus.
Neste dia 8 de dezembro, há 50 anos, encerrava em Roma o Concílio Ecuménico Vaticano II, que o bom Papa João XXIII havia anunciado a 25 de janeiro de 1959 e no discurso de abertura, a 11 de outubro de 1962, afirmava discordar dos profetas da desgraça (IV,3) e que a Igreja devia afirmar a verdade e validade do Evangelho usando mais o remédio da misericórdia que o da severidade (VII, 2). Isto mesmo pretende o Papa Francisco com o Ano Jubilar da Misericórdia, que hoje se inicia. É pela misericórdia que Deus manifesta o seu poder.
† António Vitalino, bispo de Beja
25NOV2015
Emergência educativa
1. Terrorismo e educação
Na última nota escrevia o seguinte: A educação na família, na escola, nas comunidades religiosas deve ajudar a construir a paz. Bem-aventurados os que sofrem por causa da paz, proclamou Jesus. Sem avaliar todo o alcance desta afirmação, nesta semana, no torvelinho dos acontecimentos, recebi muitos incentivos para a explicitar melhor e aplicar aos ambientes que nos envolvem.
Em primeiro lugar, ao ler as propostas do sínodo sobre a família, percebi que há uma situação global, que dificulta a tarefa educativa. Na miragem ideológica dum mundo envolvido na terceira guerra mundial em fragmentos, como se expressa o Papa Francisco, afirma-se o individualismo e o direito aos bens de consumo e esquece-se a educação primordial para a relação e a pertença, a começar pela família. Por isso os outros, a própria natureza, são vistos como concorrentes e obstáculos a eliminar,como o inferno, como se expressava Sartre, e não como fazendo parte de nós, do nosso bem estar e aos quais somos devedores. Como diz S. Paulo (Rm 13, 8): não fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser o amor.
Em segundo lugar, foi o Congresso Mundial promovido em Roma pela Congregação para a Educação Católica, na semana passada. No encontro com o Papa, a 21 de novembro, uma responsável educativa perguntava como podem os educadores ser construtores da paz. Na sua resposta espontânea o Papa afirmava que é preciso ir às periferias, ao mundo dos pobres e não apenas fazer obras de beneficência para eles, dar-lhes de comer e ensiná-los a ler, mas a caminhar juntos com a sua experiência de pessoas feridas na sua humanidade. Não basta educar dentro de muros, cultivar uma cultura seletiva, de segurança, da inteligência formal, mas arriscar no cumprimento das quatorze obras de misericórdia.
Em contraste com estes pensamentos estavam as notícias veiculadas pelos meios de comunicação social: a caça aos terroristas, os ataques aos focos de terrorismo, o controle dos refugiados, a construção de defesas, o estado de emergência. Será este o caminho da construção da paz, não apenas em algumas partes do mundo, mas para todos e com todos?
A educação para os valores humanos, implica também a abertura à transcendência, expressa de muitas maneiras, também a religiosa, mas nunca proselitismo ou fundamentalismo religioso, como dizia o Papa no diálogo atrás referido. Um sistema educativo fechado, neopositivista, sem abertura à transcendência, que não toca o coração, os comportamentos e as relações fundamentais da pessoa, fecha o homem em si mesmo e não pode educar para o verdadeiro humanismo, por mais génios que produza, mas, infelizmente, também monstros.
2. Como educar para um humanismo cristão?
Como escrevi atrás, a educação, mesmo em famílias e escolas católicas, nunca pode ser proselitista ou neopositivista, mas educar para os valores, aberta à transcendência, à relação com os outros e com a natureza, procurando o seu bem.
A educação para a fé e a sua explicitação religiosa, na escuta da Palavra de Deus, no conhecimento da mensagem e pessoa de Jesus Cristo, na oração, na prática dos mandamentos e das obras de misericórdia, ajuda a fazer crescer a pessoa na verdade do seu ser e a desenvolver a sociedade nas suas múltiplas relações, construindo a paz na verdade, na justiça, na igualdade, na fraternidade.
Campos de refugiados, situação prolongada de desemprego, sobretudo de jovens, a fome, condições sub-humanas de vida, não são ambiente propício para a construção da paz mundial. Por isso não podemos pactuar com estas situações ou praticar apenas as obras de misericórdia corporais. É preciso despertar as pessoas para a sua dignidade, que se realiza nas múltiplas relações e no sentido de pertença a uma única humanidade, a família humana, para cujo desenvolvimento todos devemos contribuir. É caminhando que se faz caminho, como se ouve repetir. A educação não pode ser apenas para o conhecimento, mas para o coração, os afetos, os sentimentos e a ação.
Resta-nos um longo caminho a percorrer. Mas com lamentos, de braços caídos, não avançaremos. Os governos devem estar abertos e apoiar as experiências educativas que vão nesse sentido, em vez de querer prescrever um único tipo de escola, que muda conforme as mudanças dos partidos no governo. Basta de experimentalismos e deixemos que a sociedade civil com a família, avance e possa transmitir os valores em que acredita.
A Igreja termina o seu ano litúrgico com a solenidade de Cristo Rei, que afirma a sua soberania, não pelo poder das armas, pelo medo, pela ditadura da opressão, mas pela verdade do amor, pelo perdão, pelo dom da vida na cruz. O seu poder não é deste mundo, mas é oferecido a todos os que viveram, vivem e hão-de viver neste mundo. Só Ele nos pode salvar desta geração perversa, mas carente de amor. E quem é da verdade ou a busca de todo o coração reconhecerá n’Ele a fonte que sacia a sua sede e mata a sua fome, pois Ele é caminho, verdade e vida.
† António Vitalino, bispo de Beja
23NOV2015
Santos e Defuntos
1. Quem são os santos?
Um bispo, numa celebração de crismas, em que falou da vocação dos cristãos à santidade, perguntou a um acólito, se queria ser santo. Este respondeu espantado: isso não, sr. Bispo. Afinal o que significa ser chamados à santidade, para assustar este jovem?
O evangelho de S. Mateus termina o capítulo sobre as bem-aventuranças com o desafio: sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5, 48). Afinal será a perfeição o mesmo que santidade? S. Lucas no capítulo sobre as bem-aventuranças usa uma palavra diferente: sede misericordiosos como também vosso Pai é misericordioso (Lc 6, 36). Será santidade, perfeição e misericórdia a mesma coisa?
As palavras expressam as nossas ideias, mas também os nossos sentimentos, a nossa relação afetiva com o que significam e também o meio e ambiente sociais do tempo em que são usadas. Por isso temos de escolher as palavras mais adequadas para exprimir não apenas as nossas ideias, mas também os nossos sentimentos e os das pessoas com quem nos relacionamos.
Neste caso inclino-me para a palavra misericórdia como expressão mais adequada da santidade cristã, pois a caridade é o ápice da perfeição. Amar, servir, perdoar, reconciliar-se, rezar pelos inimigos, dar a vida por eles, foi o que fez Jesus e nos convida a fazer o mesmo. Nisto consiste a santidade e a perfeição cristã. É um caminho, um comportamento, um objetivo e a finalidade da vocação cristã e dos dons sacramentais que recebemos, pois sem eles não será possível ser santo a partir do nosso esforço pessoal.
Por isso S. Paulo (1 Co 13) fala da caridade como a única virtude que permanece depois da morte, pois Deus é amor. E o místico carmelita S. João da Cruz diz que no ocaso da vida seremos julgados pelo amor. Nele consiste a santidade.
Na visão do Apocalipse, último livro da Bíblia, lemos uma bela passagem usada na liturgia da Festa de Todos os Santos, quando fala da visão da multidão imensa daqueles que estão diante do trono na presença do Cordeiro (Jesus Cristo ressuscitado):esses são os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro (Ap.7, 14).
Estes são os santos daquela dimensão chamada Igreja triunfante. São os que acreditaram em Jesus Cristo e se deixaram salvar pelo dom da sua vida na Cruz, de onde brotaram os sacramentos, os canais da graça de Deus. Por isso todos somos chamados a ser santos, acolhendo o dom da vida de Jesus e reconhecendo-O presente nos pobres, nos despojados da sua dignidade de filhos de Deus e irmãos nossos. A santidade é o amor de Deus derramado nos nossos corações pelo seu Espírito e a projetar-se nos outros, dando muito fruto.
2. Rezar pelos defuntos?
O mês de novembro começa com a festa de Todos os Santos, mas popularmente é conhecido como o mês dos defuntos. Este é o aspeto que nos toca a todos de perto, mais que a vocação à santidade. A natureza morre e regenera-se, do outono à primavera passando pela letargia e repouso do inverno. Mas para muitos não há regeneração. Ficam-se pelo luto, pelo tabu do sofrimento e da morte. Desenvolvem-se psicologias e terapias para o trauma da morte. São mais um treino do esquecimento que uma cura interior, uma regeneração da confiança na vida em todos os seus estádios.
Para o cristão há a fé na vida eterna, pois Jesus ressuscitou. Rezar pelos nossos entes queridos falecidos é uma afirmação da fé, confiando-os à misericórdia de Deus, que os pode fazer participantes da sua vida para sempre, purificando-os de outros apegos ou amores que não o desejo de contemplar para sempre a face do Senhor.
Este ato de fé vai transformando o luto, a solidão, a morte em consolação, conforto e vontade de continuar a viver na esperança dum encontro feliz para sempre. Por isso, faz sentido rezar pelos defuntos que marcaram as nossas vidas. Isso é uma terapia, uma cura para quem está de luto e um aprofundamento da comunhão de vida entre nós e os defuntos em Deus. A comunhão dos santos torna-se uma realidade e cura os nossos traumas.
A ajuda e o conforto espiritual são muito importantes nestas situações. Dá pena ver o sofrimento de quem não tem fé e vive situações de luto, de separação de entes queridos. Também na Igreja há movimentos de entreajuda para as diversas situações de luto, como o movimento esperança e vida, mas pouco presente na nossa ação pastoral. Confrange o nosso coração ver como pessoas e seitas aproveitam esses momentos de luto e sofrimento para aprisionar no seu gueto e nos seus interesses quem sofre na solidão.
Um cristão não pode ficar indiferente perante estas situações. Mas como proceder? Há formações para tudo e investigação académica sobre o assunto, mas o mais importante é aproximar-se das pessoas e, com poucas palavras, fazer-lhes sentir que estamos ali, para acompanhar e ajudar no que for preciso.
As exéquias cristãs são uma expressão disso mesmo. São uma oração em momento de tribulação, mas animada pela crença na ressurreição, na vida eterna, na comunhão dos santos. Para quem já passou por morte de pessoas próximas e queridas e teve de presidir a exéquias, sabe bem o que isso significa na própria vida e na daqueles que compartilham a mesma dor. Aqui deixo este apelo para não deixarmos apenas aos psicólogos o acompanhamento na dor, mas aprendamos deles e do tesouro da fé cristã.
† António Vitalino, bispo de Beja
02NOV2015
Misericórdia e família
1. Caminhar juntos
No discurso de encerramento do Sínodo dos Bispos sobre a família o Papa Francisco termina com a seguinte frase, que manifesta abertura e encorajamento: para a Igreja, encerrar o Sínodo significa voltar realmente a «caminhar juntos» para levar a toda a parte do mundo, a cada diocese, a cada comunidade e a cada situação a luz do Evangelho, o abraço da Igreja e o apoio da misericórdia de Deus.
Vale a pena deter-se uns momentos a refletir sobre esta frase que resume toda a tonalidade do discurso e desafia toda a Igreja, nas diversas culturas e continentes, a olhar a família com novo olhar e acompanhá-la com uma nova atitude, mais evangélica e solidária.
Em primeiro lugar, o próprio sínodo significa isso mesmo. Os representantes dos bispos de todo o mundo procuram caminhar juntos, afinar o seu olhar e pensamento à luz do Evangelho, da tradição viva da Igreja e sensibilizar-se para a diversidade cultural dos sinodais dos diversos continentes e línguas.
Em segundo lugar, num diálogo atento e humilde, tentar diferenciar o essencial do relativo acerca da temática em diálogo, neste caso a vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo.
Por último, o Papa define uma nova atitude na relação com as famílias feridas ou fracassadas: levar a todos o abraço da Igreja e o apoio da misericórdia de Deus, e não apenas receitas ocasionais sem efeitos de cura, panaceias para iludir as pessoas e as comunidades.
Neste discurso o Papa Francisco retoma a linguagem evangélica de S. João XXIII, que convocou o concílio Vaticano II, não para definir dogmas ou condenar o mundo, mas para incutir esperança e luz à humanidade. Não se trata de negar a doutrina da Igreja e do Evangelho acerca da vontade de Deus sobre a comunidade familiar, mas de assumir a atitude de Jesus para com os doentes e feridos: a misericórdia, que não condena ou exclui, mas cura e salva.
Isto mesmo repetiu o Papa Francisco na homilia da Eucaristia conclusiva do Sínodo, a 25 de Outubro, comentando a cura do cego de Jericó, Bartimeu. Jesus ouve o grito do cego, ao contrário da multidão que o seguia e dos próprios discípulos, a quem intima para lho trazer. Esta é a missão da Igreja: escutar, parar, olhar com empatia e ajudar os doentes e feridos a integrar-se na comunidade.
A Igreja não existe apenas para os bons, mas para todos e tem de encontrar caminhos de inclusão na comunidade, de cura, de reconciliação para todos os que desejam e se deixam curar.
Também a Igreja diocesana se encontra em sínodo. No próximo sábado, dia 31, vamos realizar mais uma assembleia com clero, consagrados e leigos, para acertarmos o passo da nossa caminhada comunitária, aprovarmos algumas propostas e entrarmos no último ano do nosso sínodo mais motivados, unidos e apostólicos, levando a boa nova do amor salvífico de Deus a todas as pessoas com quem vivemos.
2. Povo a caminho
Na vasta área da diocese de Beja há muitos montes e recantos dispersos e fora do olhar diário das nossas comunidades paroquiais. Nas visitas pastorais dos bispos procuramos trazê-las para a atenção e cuidado dos responsáveis locais.
Por isso, este ano estão a decorrer as visitas pastorais ao concelho e arciprestado de Odemira, a maior área concelhia de Portugal e que abriga realidades muito díspares no contexto das populações do nosso país, desde imigrantes de todos os continentes para trabalhar sobretudo na agricultura até comunidades com identidades e modos de viver diferentes do habitual da tradição alentejana.
Na semana passada, D. João Marcos percorreu as paróquias confiadas aos membros da Milícia de Cristo, S. Martinho das Amoreiras, Relíquias, Colos, Santa Luzia, Vale de Santiago e Bicos, aí pernoitando, para contatar com as entidades e instituições, visitar os doentes, reunir com os colaboradores e rezar com as comunidades.
Em Beja realizou-se, no dia 24 de outubro, a solenidade de S. Sezinando, padroeiro da cidade, a assembleia diocesana do Renovamento Carismático (RCC) e os Professores de Educação Moral e Religiosa nas Escolas (EMRC) reuniram para aprofundar a sua ação durante este ano letivo. Fez parte de ambos os encontros a celebração eucarística presidida pelo Bispo.
No final do dia, na igreja de Santa Maria o bispo presidiu a uma solene concelebração da Eucaristia com Vésperas cantadas e a renovação da consagração da cidade a S. Sezinando,
assinalando também o quinquagésimo aniversário da morte de D. José do Patrocínio Dias. Assim se caminha e fortalece o peregrinar do Povo de Deus.
Outro momento importante da construção das igrejas locais é a ordenação e entrada solene dum novo bispo e a despedida do anterior. Foi o que aconteceu este fim-de-semana na vizinha diocese de Setúbal.
No dia 25 de outubro, com a participação da maioria dos bispos portugueses e de muitos outros vindos de várias partes do mundo, sobretudo membros da Congregação dos Dehonianos, a que pertence o novo bispo, foi ordenado D. José Ornelas de Carvalho, que foi professor de Sagrada Escritura na Universidade Católica e Superior Geral da sua Congregação durante doze anos.
Foi uma grande manifestação de Igreja, Povo de Deus, que acorreu em multidão e muitos ficaram na rua por não caberem dentro da catedral, seguindo a celebração através de grandes plasmas durante mais de três horas.
No dia seguinte, a 26 de outubro, na mesma catedral, assinalou-se o quadragésimo aniversário da ordenação do primeiro bispo da diocese, D. Manuel da Silva Martins, com a participação dos três bispos de Setúbal, além do Núncio Apostólico, de muitos outros bispos de Portugal e de muitos cristãos.
Assim caminha, cresce e se constrói o Povo de Deus.
† António Vitalino, bispo de Beja
28OUT2015
Quem e como educar
1. Urgência da educação
De muitos modos e amiúde se aborda o tema da educação, mas nem todos pensam o mesmo, embora usando palavras iguais ou semelhantes. Desde o iluminismo, sobretudo a partir de Rousseau que se propagou a ideia de que a natureza é boa e a educação corrompe a bondade natural do ser humano. Esta ideia continua subjacente na ideologia do género, quando afirma que a diferença sexual é uma questão da cultura e o ser humano deve ter a liberdade de escolher a sua identidade específica.
Estas ideologias têm contribuído para o desnorte de muita gente, que vive sem saber para onde caminha, experimentando no seu íntimo uma grande solidão, embora rodeado de muitas pessoas, por vezes atropelando-as. Toda esta situação convence-me cada vez mais da necessidade e urgência da educação no sentido da transmissão de princípios e valores estruturantes da personalidade.
Mas a transmissão natural e personalizante desses ideais de vida acontece a partir da geração por amor e do interesse afetivo dos progenitores pela criatura gerada. A frieza, a indiferença e o individualismo das relações familiares não favorece o desenvolvimento da personalidade, para a sensação de bem estar das pessoas e a sua integração harmónica na sociedade.
O Sínodo dos Bispos a decorrer em Roma sobre a vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo está a abordar este tema com muita atualidade. D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa é um dos participantes portugueses no Sínodo, afirmou que não podemos olhar para os indivíduos isolados, mas para as agregações familiares, quer estejam ou não de acordo com a moral católica.
A pastoral da Igreja falha redondamente quando não considera as pessoas praticantes na sua relação fundamental constituída pela família. Foram os nexos familiares que ajudaram a ultrapassar os anos de crise social e económica. Por isso a família é a escola e instituição social mais barata e eficiente. Quando a família falha, degenera em agressividade e violência, as sociedades enfrentam também uma grave crise.
A paixão pela educação tem de contar com a família. As escolas, os sistemas educativos, o Estado precisam de conectar com a família, procurar a sua colaboração e apoiar a sua instituição, para poder cumprir a sua missão. Devem estar ao serviço da família e não vice-versa. Também aqui se aplica o princípio da subsidiariedade, fundamental na doutrina social da Igreja e que, em muitos casos, é posto de parte, como se observa quando se defende a escola estatal como a única pública, sem atender à orientação familiar.
Neste mês comemoramos o cinquentenário da declaração do Concílio Vaticano II sobre a educação cristã, cujos princípios é bom recordar e implementar para bem da família e da sociedade. Sem uma visão correta da pessoa humana, uma sã antropologia, é impossível educar. Sem educação o diálogo e a convivência pacífica tornam-se impossíveis. Quem não estiver de acordo, comente e faça-me chegar os seus comentários.
2. A família na missão da Igreja
No Alentejo muitos membros da família não tem contato regular com as comunidades cristãs. Nas nossas assembleias dominicais predominam as crianças e as mulheres, sobretudo idosas. Faltam muitos membros da família nesse encontro dominical. Por isso temos de encontrar tempo e meios para nos encontrarmos com esses membros, importantes no agregado familiar e na educação dos mais novos. Aqui se aplica a expressão do Papa Francisco de que temos de ser uma Igreja em saída, uma Igreja que vai ao encontro das pessoas, dos idosos, dos doentes, dos pais sem tempo e sem ritmo dominical. Como? Precisamos de ser criativos.
Ainda esta semana, participando num evento social, tomei um pouco mais de tempo para falar com alguns participantes, sobretudo homens, que normalmente não se encontram com padres e muito menos com bispos. Pois ouvi testemunhos de vida que me comoveram e que normalmente não se escutam nem vêem nas nossas assembleias dominicais. Afinal há muitas atitudes de fé naqueles com quem normalmente não nos encontramos.
Como fomentar estes encontros e ajudar as pessoas e as famílias no seu desenvolvimento e apoiá-las nas suas potencialidades educativas e sociais?
Temos muitas oportunidades desperdiçadas. Queremos sempre falar e fazer discursos moralistas sem escutar as pessoas, com os seus problemas profundos e sabedoria natural.
Reuniões de pais, preparação de batismos, preparação de casamentos, de primeiras comunhões, de crismas, de ajuda social, etc. Mais que ensinar, precisamos de escutar, perguntar, ouvir as suas respostas e ajudá-los a escutar a Palavra de Deus mais que a nossa. Um gesto, um testemunho vale mais que mil palavras, diz-se.
Também na família e na escola precisamos de escutar os mais novos e ajudar-nos mutuamente a encontrar as respostas. Esta é a pedagogia de Jesus, como ouvimos no evangelho do jovem que foi perguntar-lhe o que é preciso para alcançar a vida eterna (Mc 10, 17 ss). Acompanhar, escutar, perguntar, ouvir e descobrir os caminhos da vida, na entreajuda fraterna, familiar e eclesial são sabedoria e património fundamental para aprofundarmos as nossas raízes e relações e ajudarmos quem está em crise pessoal ou comunitária.
† António Vitalino, bispo de Beja
12OUT2015
Assimilar ou integrar
1. Assimilar para conviver ou dominar?
Na minha experiência com migrantes, provenientes de vários países, continentes e regiões, falando a mesma língua ou tentando expressar-se num idioma comum, muitas vezes mal aprendido, pergunto-me como é possível convivermos em paz nesta Babilónia de línguas e de culturas. A emigração em massa, forçada, veio agudizar a necessidade de encontrarmos respostas satisfatórias. Por não o termos feito até agora, encontramos muitas dificuldades em ter êxito na presente situação, embora desde há muito sabemos que os guetos não ajudam a construir um povo coeso e pacífico.
Muitas tentativas têm sido experimentadas, mas continua a confusão das experiências fracassadas. Desde o apartheid, o multiculturalismo, a assimilação forçada, a integração às experiências interculturais, qual o caminho mais adequado em ordem a construir um povo e uma Europa unida, apesar da diversidade de línguas e de culturas?
Na brevidade destas notas, não irei citar estudos feitos por peritos na matéria, mas somente apontar alguns caminhos simples e viáveis, até porque estamos perante uma invasão de refugiados, diferentes nas suas origens culturais e linguísticas, mas sonhando encontrar a paz e o bem estar pessoal e familiar que lhes tem sido negado.
O esforço a fazer tem de ser recíproco, embora tenha mais obrigação de tomar a iniciativa quem não teve de abandonar a sua terra e família. Um acolhimento fraterno e inteligente, consciente das possibilidades reais, mas com um coração magnânimo, é a primeira atitude que se espera, para não aumentar o sofrimento de quem bate à nossa porta. Lembra-me sempre do que presenciei quando era pequeno, no tempo da carestia dos últimos anos da segunda guerra mundial e seguintes: em que podemos ajudar, ser úteis? E a repartir o pouco que tínhamos com quem nada tinha.
Hoje em dia, com tantos recursos e meios, todos os países da União Europeia poderão facilitar este acolhimento e ajuda. Apesar da diversidade de línguas, há uma que todos entendem, a do coração, do acolhimento franco e fraterno. Mas também há muitos tradutores e intérpretes. Precisamos de quem saiba coordenar esse encontro e entreajuda e não cair na exploração de quem se aproveita da situação, ajudando apenas porque arranjou um emprego pago com recursos estatais.
Muitas instituições e organismos, algumas ligadas à Igreja Católica, criaram uma plataforma para organizar o acolhimento dos refugiados. Aguardamos algumas instruções concretas, para que toda a sociedade civil possa colaborar, criando a mentalidade de acolhimento fraterno e de que isso não é apenas da responsabilidade do governo, mas de todos os cidadãos, conscientes de que devem fazer aos outros aquilo que gostariam que lhes fosse feito, se estivessem nas mesmas circunstâncias. Aqui tem aplicação o princípio da subsidiariedade.
2. A riqueza do encontro intercultural
Na igreja, na catequese, na liturgia, nos grupos, nos movimentos, no trabalho, na escola, no lazer, numa palavra, no encontro entre pessoas há ou deve haver sempre um dar e receber, que enriquece as duas partes. Mesmo quando uma das partes pertence a um grupo social ou culturalmente desfavorecido, quando no encontro se vê a dignidade da pessoa humana, processa-se um enriquecimento em ambas. Isto para não falar da perspetiva evangélica de que no necessitado encontramos o próprio Cristo.
Por isso não podemos difundir ideias de que se trata de uma invasão islâmica através destes fugidos à guerra e à fome. Que haja sempre quem se aproveite das necessidades do próximo é verdade, mas isso não justifica esses procedimentos. Os aproveitadores estão de ambas as partes. Claro que é preciso estar atento e denunciar os aproveitadores e exploradores de ambos os lados.
O melhor para descobrir os mal intencionados é criar um clima de acolhimento e facilitar o encontro no respeito pela diversidade, mas sempre num diálogo intercultural e inter-religioso. Far-nos-ia bem reler a Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa do Concílio Vaticano II, que no dia 7 de Dezembro de 1965 foi promulgada. Além de assim celebrarmos os 50 anos do encerramento do Concílio, refrescaríamos as nossas ideias e deixaríamos de repetir slogans xenófobos, pouco cristãos, ou pelo menos denunciadores do medo que tolhe a vida social.
Infelizmente estamos pouco habituados ao diálogo, pois vivemos de opiniões feitas e individualistas. O verdadeiro diálogo aprende-se em família, fruto do amor e da confiança que deve existir, sempre interessados no bem do outro, que, por sua vez, também quer o nosso bem. Quando este diálogo começa a faltar, aparecem a desconfiança, o receio, o medo e a solidão.
Oxalá o Sínodo dos Bispos sobre a vocação e missão da família na igreja e no mundo contemporâneo ajude a reavivar estes valores essenciais da convivência humana, cuja génese começa no berço. Para que se cumpra a vontade de Deus a seu respeito e não a vontade de quem quer a sua destruição, peço a oração dos diocesanos.
Aproxima-se o dia mundial das missões, depois de termos iniciado o mês de Outubro com a festa de Santa Teresinha, padroeira das Missões. O espírito missionário e o encontro intercultural ajudar-nos-ão a superar a indiferença, que é a pior violência que nos podemos fazer a nós mesmos, à família e à sociedade. Que a necessidade de acolher os refugiados nos ajude a descobrir o grande valor do diálogo, que leva à integração.
† António Vitalino, bispo de Beja
5 de Outubro de 2015
Um povo de profetas
1. Que significa ser povo?
Ao ver os milhares de refugiados, de todas as idades, mas sobretudo jovens, que fogem à fome e à guerra, enfrentando muitos perigos e obstáculos, mas sempre sonhando com um país onde possam realizar os seus sonhos, em paz e liberdade, pergunto-me se com estas pessoas, provenientes de diversos países, se pode formar um povo ou se acaso não está nelas o que falta a muitos países com a mesma língua e história, mas com pessoas acomodadas, egoístas e tristes. Por estes pensamentos já dá para entender que construir um povo não é algo estático e permanente, mas precisa de um dinamismo constante. Parar é morrer, costuma-se dizer e isto também se aplica na constituição da identidade cultural de um povo.
Por isso Jesus adverte aqueles que escandalizam, menosprezam, descartam os seus irmãos, sobretudo as crianças e os indefesos. Seria melhor atar-lhes uma mó ao pescoço e atirá-los ao fundo do mar. Mas são estes que parecem ficar sempre na mó de cima, explorando os pobres e indefesos, como acontece com muitos neste êxodo, atirados ao mar, sem dó nem piedade. Jesus diz-nos que no seu Reino não pode ser assim. Para entrar nele é preciso ser audaz e não ter medo de sacrificar algum dos nossos membros, se eles nos impedem de avançar. E S. Tiago adverte os gananciosos e exploradores, que acumulam tesouros neste mundo, sem escrúpulos, sem consciência dos valores e da dignidade da pessoa humana, esses apodrecerão com o seu vil metal e serão excluídos do Reino e do Povo de Deus.
Os discípulos de Jesus, os apóstolos e seus continuadores, são enviados a anunciar a boa nova e a curar as enfermidades. E são muitas de que precisamos de ser curados. Mas é preciso que os doentes aceitem ser curados e acreditem na boa nova, consubstanciada na paz com que os apóstolos devem saudar as pessoas. Assim começa a evangelização, o anúncio e a iniciação cristã, que nos ajuda a construir o povo de Deus e a ser membros dignos desse povo. Ir ao encontro das pessoas, com alegria e coração aberto e fraterno, assim acontece a missão da Igreja, até que todos vivam unidos e atentos uns aos outros, de modo que ninguém se sinta excluído, descartado e sofrendo necessidade. Vede como eles se amam,dizia-se dos primeiros cristãos e o seu número crescia de dia para dia.
Será que isto acontece hoje em dia, entre nós e noutras partes do mundo? Onde isso acontece as comunidades crescem e adquirem identidade. Chamados e enviados em missão, temos de perguntar-nos em que falhamos, pois as nossas comunidades estão cada vez mais reduzidas e envelhecidas. Temos uma grande oportunidade de rejuvenescermos, criando um ambiente de acolhimento aos refugiados que batem à porta da Europa, que necessita tanto deles como eles da Europa.
2. Oxalá todos fossem profetas
Moisés, perante as acusações invejosas de Josué, que detetou duas pessoas a profetizar, sem pertencerem ao grupo dos escolhidos, respondeu:oxalá todo o povo fosse profeta (Num. 11, 29). E Jesus também diz algo parecido, quando lhe vieram dizer que havia alguém a fazer milagres apesar de não pertencer ao número dos seus discípulos. Quem não é contra nós é por nós (Mc 9, 40).
Os mensageiros de Jesus que anunciam a boa nova são profetas, não no sentido de predizerem o futuro, mas de falarem em nome de Deus, que ama os seus filhos e quer que todos se salvem. Essa é a grande profecia que o mundo precisa de ouvir e sentir. Mas tem de ser testemunhada pela autenticidade de vida dos mensageiros. A Igreja tem de ser um povo de profetas da alegria, da esperança, da paz, do amor.
Estamos a viver um ano da vida consagrada. No anúncio deste ano o Papa Francisco disse que os consagrados são profetas da alegria. Isto pode ser dito de todos os cristãos, mas com maior força dos que foram chamados a seguir Jesus de perto, imitando na visibilidade da sua vida o estilo de vida de Jesus. É este radicalismo profético que constrói a Igreja, o povo de Deus.
Vamos viver um ano jubilar da misericórdia, que nos recorda que sem esse amor misericordioso de Deus a Igreja não subsiste e a sua missão torna-se inútil, museu, estrutura sem alma, sem coração, condenada a morrer e desaparecer. Temos uma grande oportunidade de conversão, de mudança das nossas mentalidades, pedagogias e métodos de evangelização.
Este coração e espírito misericordioso dar-nos-á uma nova linguagem e capacidade de tocar outros corações, fazendo-lhes sentir quanto Deus os ama e criou para amar e assim serem alegres e felizes, porque fazem outros felizes. Felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia e conhecerão a Deus, a fonte da misericórdia, assim lemos nas bem-aventuranças proclamadas por Jesus. Assim queremos nós viver este último ano do Sínodo diocesano e também o último ano do meu ministério episcopal à frente desta diocese.
Durante ele teremos a visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima e no final iremos nós como peregrinos até Fátima, para depositarmos aos seus pés as conclusões e propósitos do nosso Sínodo, para dela ouvirmos uma vez mais o apelo feito nas bodas de Caná: fazei tudo o que Ele, o Seu Filho Jesus, vos disser. E com ela aprendamos a ouvir a Palavra de Deus e a ponhamos em prática, tendo-a sempre como mãe que nos acompanha e intercede por nós e a nossa diocese.
† António Vitalino, bispo de Beja
28 SET 2015
Recomeçar ou começar de novo?
1. Início de novo ano pastoral
O mês de setembro é, no hemisfério norte, o período do ano em que tudo recomeça, após um tempo de férias ou de ritmo mais vagaroso. Mas será um recomeço ou um começar de novo? Escola, emprego, vida familiar, desporto, etc. Para muitos é um novo começo, sobretudo para quem inicia um novo curso ou mudou de residência ou de emprego. Mas para outros é voltar ao habitual. Há anos em que tudo parece arrastar-se, uma rotina continuada. Quando assim acontece, trata-se de um recomeço, cuja continuação não terá um bom final, pois neste caso não crescemos como pessoas, não nos enriquecemos e empobrecemos o nosso meio. Nem sequer a produtividade no trabalho aumentará.
Se isto acontece na missão eclesial, no início do que chamamos novo ano pastoral, então retrocedemos e arrastamos nessa morte lenta as nossas comunidades. É um envelhecimento precoce e morte certa. Na vida e missão da Igreja é necessário ardor, entusiasmo, alegria, nova linguagem nas relações com Deus, com as comunidades e o meio ambiente. Os responsáveis das comunidades, a começar pelos bispos, os presbíteros, os diáconos, os consagrados e consagradas, os coordenadores de movimentos e serviços precisam de olear bem os músculos e os carris, para puxarem aqueles que perderam o ritmo no tempo de férias.
Este ano, muito clero de Portugal juntou-se em Fátima nos finais de Agosto, a participar num Simpósio, que desenvolveu o tema do Padre, como irmão e pastor,que me fez lembrar a famosa frase do sermão 46 de Santo Agostinho sobre os pastores, que aparece no Ofício de Leituras destas semanas: convosco sou cristão e para vós sou bispo.
Depois, nos primeiros dias de Setembro, os bispos portugueses foram todos a Roma em visita ad limina, para avaliarem colegialmente entre si, com o Papa e seus colaboradores a missão que lhes está confiada. Foi um encontro muito variado, com momentos fortes de oração e celebração em locais significativos de Roma, sobretudo nas quatro basílicas maiores e na igreja de Santo António dos Portugueses. Houve um diálogo com pessoas de grande experiência e visão mundial e com responsabilidade na vida da Igreja. Por isso regressámos bem oleados para ajudar a nossa Igreja em Portugal a renovar-se e ganhar novo ritmo.
Na diocese de Beja estamos a apresentar os novos párocos nas paróquias onde houve transferências, a realizar vários encontros de lançamento do novo ano pastoral e, no próximo sábado, dia 26 de Setembro, celebraremos o Dia Diocesano, que marca o arranque definitivo da missão na igreja de Beja no ano de 2015-2016, que será o último ano do Sínodo e que vai encerrar na grande peregrinação a Fátima a 25 e 26 de Junho de2016.
Espero que este seja um ano dum novo começo e de passagem e transmissão do testemunho da fé e da missão na Igreja de Beja.
2. Áreas em que é preciso um novo começo
Embora deva continuar aquilo que está bem, no entanto há muitas áreas na pastoral diocesana em que é preciso iniciar ou mudar de rumo, a começar pelos próprios pastores. Limito-me a mencionar a pedagogia da misericórdia, que deve transparecer em toda a nossa missão. Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso, diz Jesus no Evangelho (Lc 6, 36) e que o Papa Francisco quis realçar com a proclamação do ano santo da misericórdia. Este vai também ser o lema do nosso ano pastoral e do último ano do Sínodo diocesano. Se em todas as nossas atitudes e atividades transparecer a misericórdia do Bom Pastor, a nossa diocese dará um forte contributo para a renovação da sociedade.
Uma outra área em que é preciso começar de novo é a pastoral familiar, a partir da preparação remota do matrimónio e do acompanhamento espiritual e humano das famílias. No respeito pela liberdade das pessoas, temos que ir ao seu encontro, escutá-las, interrogá-las e caminhar com elas, num diálogo interessado no seu bem, sem qualquer interesse de ordem material. A indiferença e o individualismo reinantes precisa de ser superado pela pastoral do encontro, do interesse pelo bem das pessoas, do diálogo com todas as gerações, como escreve o Papa Francisco no discurso que entregou aos bispos portugueses no final do encontro que tiveram com ele. Os casais e as famílias necessitam deste acompanhamento interessado e dialogante. O encontro mundial das famílias em Filadélfia, que acontece esta semana e o próximo Sínodo dos Bispos em outubro nos sirvam de inspiração e estímulo para a nossa missão em prol da família.
Sem poder mencionar todas as áreas em que precisamos de um novo início, penso que a pastoral juvenil necessita de um impulso criativo. Em vez de tentarmos impor o vestido da primeira comunhão, para usar uma imagem do Papa Francisco no discurso mencionado, alimentemos a esperança e o sonho dos nossos jovens, sobretudo dos que estão desempregados.
A pedagogia de Jesus, seguida por S. João Bosco, pode ajudar-nos neste campo: estar com os jovens, em vez de lhes pregar sermões, deixar que sejam protagonistas na prática do bem, apontar-lhes horizontes vastos e desafiantes de missão. Demos-lhes espaço nas nossas comunidades. Ao vermos as imagens dos jovens refugiados, que enfrentam a morte para realizar os seus sonhos, que os seus países de origem não lhes possibilitam, acordemos do sono e da preguiça do bem-estar, que nos impede de ser criativos de um mundo melhor, mais fraterno e solidário.
† António Vitalino, bispo de Beja,
21SET2015
Impressões da Visita ad limina
1. Alguns pontos do programa
De 5 a 12 de setembro os bispos portugueses estiveram em Roma, convocados pelo Papa Francisco para realizar a visita periódica ao túmulo dos apóstolos Pedro e Paulo e ao sucessor de Pedro, designada em latim por visita ad limina Apostolorum, a fim de aprofundar a comunhão fraterna e colegial com ele e entre si. O diretório dos bispos diz que esta visita se deve realizar, se possível, de cinco em cinco anos. Mas, com o aumento do número de bispos no mundo, devido à criação de novas dioceses e a longevidade crescente, a periodicidade tem vindo a dilatar-se.
Nesta visita há muitos momentos de oração, de diálogo com o Papa e seus colaboradores nas várias congregações, conselhos pontifícios e comissões, com um programa muito preenchido e cansativo, sobretudo para os presidentes das comissões episcopais, que têm de fazer uma apresentação e breve relatório sobre a situação da Igreja em Portugal no respectivo setor, para além dos relatórios enviados cerca de meio ano antes por cada bispo acerca da sua diocese e serviço.
O primeiro dia foi de convívio e viagem de estudo da história do papado, sobretudo em relação aos anos que precederam o assim denominado exílio de Avinhão. Fomos a Anagni, uma terra a sul de Roma, onde residiram alguns papas, sendo o mais conhecido Bonifácio VIII, o último a defender a primazia do poder espiritual e temporal do papado contra as pretensões absolutistas dos imperadores da Alemanha e da França.
Visitar a catedral de Anagni, da sua cripta, a que podemos chamar a primeira Capela Sistina, assim como o palácio de Bonifácio VIII, foi refrescar a memória dum período importante da história da Igreja. O almoço em Fumoni, onde o Papa S. Celestino V passou os últimos meses de vida após a sua resignação, em 1294, a última antes de Bento XVI, projetou-nos para épocas históricas muito distantes no tempo e na mentalidade, mas com alguns acontecimentos similares, embora com causas e interpretações diferentes.
No dia 7, às 7,30 horas da manhã já nos encontrávamos a celebrar a Eucaristia com Laudes na cripta dos Papas, diante do túmulo de S. Pedro, para, logo a seguir, o primeiro grupo, de que fiz parte, se encontrar com o Papa Francisco na biblioteca pontifícia. Depois da saudação e apresentação pessoal de cada bispo, começou um diálogo ameno e profundo dos bispos com o Papa, sobre as mais variadas questões, como a catequese e iniciação cristã, o problema dos imigrantes, etc.
Sem entrar em pormenores, notou-se a mudança em curso, do centralismo de Roma para a corresponsabilização dos bispos nas suas dioceses e países, embora sempre em comunhão colegial entre si e com o Papa, sucessor de Pedro.
Notou-se também o início do ano nos serviços da Cúria romana, após um período de férias. O verão em Roma é quente e húmido. Por isso muitos saem de lá e vão de férias. Também os Papas anteriores costumavam sair para as montanhas e para Castelgandolfo, nas imediações de Roma, uma colina alta, de clima ameno. O Papa Francisco tem ficado no Vaticano, com pena dos comerciantes desses locais de férias, que têm perdido muitos clientes e parecemdescontentes com esta situação.
2. Mudanças de estilo
Sendo esta a minha terceira visita, depois de 1999 com S. João Paulo II e 2007 com Bento XVI, pareceu-me ter sido a melhor e com maior participação de bispos eméritos, praticamente todos, como também ouvi dizer a outros colegas. Talvez a popularidade do Papa Francisco tenha sido um chamariz.
Notei que o Papa e os seus colaboradores mostram um grande apreço pela co-responsabilidade dos bispos nas suas respectivas dioceses e países, estando a esvaziar o centralismo de Roma. Sinal disso foi a promulgação, durante a nossa visita, do Motu próprio Mitis iudex (juiz misericordioso) sobre os processos de nulidade do matrimónio. Os bispos de cada país, em princípio, conhecem melhor a sua realidade cultural e eclesial e poderão discernir com maior proximidade e justeza a verdade do compromisso matrimonial, mantendo o princípio da indissolubilidade do matrimónio cristão. O mesmo acontece noutras áreas, sem negar a ortodoxia da fé cristã.
Um outro benefício deste encontro com o Papa e os seus serviços é proporcionar aos bispos mais tempo para estarem juntos, para rezar, refletir e dialogar sobre o seu ministério, com suas alegrias e dificuldades, daí resultando um aprofundamento da sua comunhão e compreensão mútua. Jesus enviou os apóstolos dois a dois, em missão. A comunidade é sempre importante e benéfica para o exercício da vida apostólica. Embora nos reunamos várias vezes por ano, em assembleias plenárias, retiro, jornadas e comissões, no entanto, longe dos nossos ambientes de residência e de trabalho, embora tendo sempre presentes os afazeres do nosso ministério, enquanto a mente descansa, o coração aquece, para assumir com novo entusiasmo, novo ardor e linguagens mais adequadas a missão evangelizadora.
Desta vez a Visita ad limina aconteceu no início do ano pastoral. Na diocese de Beja preparamo-nos para viver o último ano do sínodo, também ano jubilar da misericórdia, da visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, em preparação do primeiro centenário das aparições, à qual quero consagrar o meu último ano à frente desta diocese.
† António Vitalino, bispo de Beja
15/SET/2015
Férias e Festas
1. As férias são necessárias?
Começar esta última nota antes da interrupção do mês de agosto com uma interrogação sobre a necessidade das férias é arriscar não ser lido e deixar uma má impressão nos amigos e colaboradores, pois elas fazem parte dos direitos do trabalhador, direitos sagrados conquistados à custa de muitas lutas e sofrimentos. As férias, os dias de descanso e o número de horas laborais por semana são direitos adquiridos e espero que a economia de mercado não prevaleça sobre a dignidade da pessoa humana, fazendo desta uma máquina de trabalho e um instrumento de lucro. Já Jesus reconheceu e recomendou essa necessidade aos discípulos (cf. Mc 6, 20-44 e Mt 11,28).
Mas como vivemos as nossas merecidas férias? Será necessário sair de casa e da terra onde habitamos todo o ano para ter férias? Será que o facto de viajarmos para outras terras e aí passarmos uns dias nos descansa mesmo? Além disso, muitos nem sequer usam os dias de descanso semanais para repousar do ritmo acelerado em que vivem. O tráfico nas estradas mantém-se intenso, embora não em direção aos locais de trabalho, como nos outros dias.
No inverno, para os grandes centros comerciais e no verão e dias de sol, até às praias. Será que isso nos descansa mesmo ou aumenta em nós o stress? Em alguns países do centro da Europa os sábados de tarde e os domingos são mesmo para descansar e dedicar-se à família, pois os comércios fecham. Nisto, sindicatos e igrejas estão de acordo. As famílias dedicam esses tempos de repouso às lides da casa, ao descanso, às caminhadas nas imediações da aldeia e ao diálogo entre os seus membros, muitas vezes também ao grupo religioso a que se pertence, com momentos de formação e oração comunitária.
Por vezes, ouve-se dizer que muitas pessoas chegam cansadas das férias e precisam de descansar delas. Neste caso, não foram aquilo que significam, liberdade de horários de trabalho, descanso, dedicação àquilo que não nos cansa, aos amigos e familiares com quem gostamos de estar, à leitura e cultivo dos valores do espírito. Afinal, todos podem e precisam de ter férias, a não ser aqueles que sofrem de doença, de miséria ou de abandono por não terem verdadeiros amigos e família. E quem não descobriu e experimentou o amor que vem de Deus, em quem pode repousar, esse continua inquieto, insatisfeito, sempre à procura e a correr de lado para lado, para fora de si, sem descanso.
Espero que isto não se passe connosco e por isso desejo a todos belos dias de descanso, de repouso e de aprofundamento das relações essenciais da vida humana com as pessoas que fazem parte do nosso dia a dia e com o Senhor da vida, no respeito pela beleza da natureza, com tempo para a admirar e contemplar. Boas e repousantes férias para todos.
2. Festas populares no tempo de férias
Em muitas terras com emigrantes o tempo de férias traz vida e movimento aos dias adormecidos ao longo do ano, sobretudo nas aldeias do interior, desertificadas e envelhecidas. As comissões de festas procuram associar o convívio e as devoções tradicionais da terra, mesmo que tenham de trasladar para essa altura a comemoração dos padroeiros, misturando o profano e o religioso, pelo menos nos seus cartazes publicitários, numa simbiose em que, por vezes, os atos de culto apenas aparecem no título da festa e na imagem da santinha, como se diz no Alentejo.
Nem sempre as comissões se constituem com o conhecimento da paróquia, nem os programas se combinam de acordo com os responsáveis da comunidade eclesial. Por isso não podemos chamar a isso de festas religiosas, mas simplesmente de festas populares, em que as paróquias realizam alguns atos de culto, que fazem parte dos acontecimentos festivos, mas não são a festa.
Escrevo isto porque, por vezes, se exagera no programa das festas, nos gastos avultados, sobretudo em arruados, artistas convidados e fogo de artifício. O culto dos exibicionismos, das disputas entre comissões e das vaidades, que muitas vezes acaba em zangas e arruaças, não é muito próprio de uma festa popular nem muito menos religiosa. As festas devem promover o convívio, a alegria entre a população, residentes e visitantes e, se religiosas, também a devoção e o fortalecimento da fé das pessoas.
Também não posso deixar de advertir as comissões de festas ligadas à igreja, aos conselhos económicos paroquiais e às irmandades para terem cuidado com a legalidade fiscal, não favorecendo a fuga aos impostos sobretudo no pagamento aos artistas. E se os lucros económicos da festa não se destinarem ao culto ou a outras finalidades da ação da igreja, também devem submeter-se às normas contributivas em vigor.
Festas, sim, mas para promover, na simplicidade, o convívio, a alegria e a devoção, no respeito pelas leis em vigor. Assim vale a pena festejar e cansar-se, pois nada poderá pagar o lucro social e religioso daí resultante. Boas férias e boas festas são os meus votos.
† António Vitalino, bispo de Beja
28JUL2015
Ecologia dos afetos
1. A educação dos afetos
Há pessoas muito racionais e frias nas suas relações com os outros, mas que ficam melindradas quando alguém lhes toca no seu amor próprio, põe em causa o seu discurso ou a sua opinião, mostrando que não se aplica na situação presente. Isto deve fazer-nos pensar sobre como educamos a nossa personalidade. A exaltação da racionalidade sem ter em conta outros aspetos da vida do ser humano, sobretudo as suas relações com outros e com o ambiente, não pode ser considerada uma educação boa, integral, à qual se refere, por várias vezes, a recente encíclica do Papa Louvado sejas, sobre o cuidado da casa comum.
No exercício das nossas relações com os outros, com a natureza e com Deus, precisamos de envolver todas as capacidades de que estamos dotados, corpo, sentidos, vontade, inteligência e respeitá-las também nos outros. Os demagogos que usam apenas a palavra, os argumentos racionais, sem implicação das suas pessoas, sem coerência de vida, sem sensibilidade e afeto para com os outros, depressa caem na desgraça dos seus ouvintes e deixam de ser escutados.
Mas como e onde podemos desenvolver estas múltiplas capacidades de que estamos dotados? Nesta breve nota irei apenas falar de uma, mas que envolve todas as outras: a educação para os afetos, para a gratuidade, a solidariedade, a atenção aos outros, para o amor. Antes de aprender a falar, já a criança aprende a sentir e expressar o seu afeto, no berço, ao colo, na família.
Na sua recente viagem a três países da América Latina, na homilia do dia 6, no Equador, o Papa Francisco repetia um pensamento de que já falou muitas vezes. Na família, diz o Papa citando a sua encíclica Louvado sejas (nº 213) «aprende-se a pedir licença sem servilismo, a dizer “obrigado” como expressão duma sentida avaliação das coisas que recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância; lá se aprende também a pedir desculpa quando fazemos algo de mal, quando nos ofendemos. Porque, em toda a família, há ofensas. O problema é depois pedir perdão. Estes pequenos gestos de sincera cortesia ajudam a construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia». A família é o hospital mais próximo, quando uma pessoa está doente cuidam-na lá enquanto se pode. A família é a primeira escola das crianças, é o grupo de referência imprescindível para os jovens, é o melhor asilo para os idosos. A família constitui a grande «riqueza social», que outras instituições não podem substituir, devendo ser ajudada e reforçada para não perder jamais o justo sentido dos serviços que a sociedade presta aos seus cidadãos. Com efeito, estes serviços que a sociedade presta aos cidadãos não são uma espécie de esmola, mas uma verdadeira «dívida social» para com a instituição familiar, que é a base e que tanto contribui para o bem comum de todos.
A seguir o Papa pede oração pela família e pelo próximo Sínodo dos Bispos, que vai vai tratar da vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. Já foi publicado o instrumento de trabalho, que teve em conta as propostas do sínodo extraordinário sobre o mesmo tema, em outubro de 2014, enriquecido com as sugestões enviadas de todo o mundo, em ordem a curar as feridas de tantos lares. Sem a experiência da família, dificilmente conseguiremos esta educação dos afetos.
2. A família, experiência de vida plena
Muita coisa se poderá dizer e escrever acerca da família, constituída a partir do amor de um homem e uma mulher, amor que dá fruto e se projeta nos filhos e que, para os crentes, se orienta para a sua fonte, Deus criador e salvador, que se manifestou na pessoa e mensagem de Jesus Cristo. Sem esta orientação e projeção o amor humano facilmente se converte em egoísmo refinado.
Como sabemos pelo Evangelho, Jesus não veio para apenas apontar a vontade de Deus a respeito da criação, mas para salvar e curar as feridas da humanidade (Jo 3, 17). Por isso respondeu aos acusadores da mulher adúltera, que queriam que ele aplicasse a lei, pronunciando a sentença de morte, com a observação: quem não tem pecado que atire a primeira pedra. E à mulher, que ficou sozinha, diz: também eu não te condeno. Vai e não voltes a pecar (Jo 8, 1 ss). É esta ternura e perdão de Deus que deve orientar a pastoral da Igreja, mas que também a família a deve viver, para ajudar os seus membros a fazer a experiência de vida plena, apesar das muitas fragilidades a que estão sujeitos.
A ternura nos relacionamentos familiares é a virtude quotidiana que ajuda a superar os conflitos interiores e relacionais, lemos no Documento de preparação para o Sínodo dos Bispos sobre a família, nº 70, e que se vai realizar no próximo mês de outubro. A família é o património fundamental da humanidade e da Igreja, mas está muito fragilizada e desapoiada. Mas ela é a primeira e principal escola da aprendizagem da vida, na diversidade das suas dimensões e relações.
Não admira que a Igreja sempre tem voltado as suas atenções para ela e agora o Papa Francisco nos pede para intensificarmos a pastoral das comunidades cristãs, para ajudarmos a que ela possa tornar-se cada vez mais aquilo que é chamada a ser: escola de ternura, da gratuidade, da solidariedade, de amor, de atenção aos outros, de superação do egoísmo individualista, de evangelização e de transmissão dos valores humanos e da fé.
† António Vitalino, bispo de Beja
14/JUL/2015
Espiritualidade ecológica
1. Ecologia integral
A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem,lemos na encíclica Louvado sejas (n. 138). O ser humano, dotado de capacidades reflexivas, deve pensar e orientar a sua vida, corpo e espírito, em todas as relações, sem excluir nenhuma. Nos capítulos IV e V da encíclica o Papa Francisco menciona e descreve todas essas relações, mostrando a sua importância para a realização plena e harmónica do ser humano.
A ecologia ambiental, económica e social estão interligadas. Nenhuma pode ser excluída em benefício de alguma delas. A exclusão de alguma dessas relações ou de algum membro da nossa sociedade é um empobrecimento da realidade e tem repercussões no bem integral do todo. Por isso, como seres dotados de inteligência, criados à imagem e semelhança de Deus, foi-nos confiado o cuidado de toda a criação. O nosso próprio bem depende do todo que nos envolve.
O desenvolvimento económico, desligado de todos os outros aspectos, procura apenas o maior lucro, o mercado, sem ter em conta o desenvolvimento humano e social e sem preservar o ambiente. A técnica ao serviço da economia causa muitos estragos ao ambiente e lança muita gente para o desemprego. Como já foi dito nestas considerações sobre esta encíclica, o trabalho faz parte da realização da dignidade humana. Um desenvolvimento sem consideração da dignidade da pessoa torna-se desumano. É preciso saber colocar a técnica ao serviço da pessoa e não ao contrário.
Já D. José do Patrocínio Dias, o bispo soldado de Beja, dizia que uma máquina ceifeira tirava o trabalho a 40 pessoas. O que se fez delas? Muitas ficavam nas praças das aldeias à espera que alguém as contratasse. Outras emigraram. E assim começou a desertificação do Alentejo.
Hoje, muitas aldeias estão desertas ou apenas habitadas por idosos. Como rejuvenescer a nossa sociedade? Esta encíclica põe a descoberto muitos dos erros do nosso desenvolvimento desumano. Sem apresentar soluções, pois não é essa a missão da Igreja, no entanto alerta os nossos políticos e empresários a não pensarem apenas no progresso económico e financeiro, depredando e degradando os nossos ecossistemas e tratando muitos seres humanos como descartáveis, lançando-os para as bermas do desenvolvimento tecnológico. A cultura e a justiça intergeracional também devem ser respeitadas.
No capítulo V o Papa apresenta algumas linhas de orientação e ação, como o diálogo sobre o meio ambiente na política internacional, pensando o mundo como a casa comum de todos. Os acordos internacionais precisam de ser levados à prática, tendo em conta os países mais pobres. É preciso por a politica e a economia ao serviço da vida humana e ter em conta o património das religiões no diálogo com as ciências.
2. Uma educação e espiritualidade ecológicas
O sexto e último capítulo da encíclica aponta alguns elementos e perspectivas para uma educação e espiritualidade ecológicas. Já Aristóteles considerava a admiração como o princípio da filosofia. Faz parte da inteligência humana procurar as últimas causas, os fundamentos de toda a realidade e acontecimentos. Ora essa busca começa pela capacidade de nos admirarmos perante aquilo que nos rodeia e acontece.
Hoje em dia perguntamos mais sobre a utilidade das coisas. Para que servem? Mas este modo de conhecimento não é o mais característico da nossa inteligência. Os seres e os acontecimentos têm a sua beleza e existência própria. Admirá-los, conhecê-los e apreciá-los naquilo que são e não por causa da sua utilidade em relação ao nosso próprio bem estar, pressupõe uma atitude no uso da inteligência e dos afectos que exigem uma educação e uma espiritualidade da nossa maneira de nos relacionarmos com o mundo. A educação filosófica, estética e espiritual tocam o âmago do ser humano. Infelizmente banimos o cultivo destas atitudes dos nossos sistemas educativos. Deixamos tudo isso às opções de alguns. Os resultados catastróficos estão à vista.
O Evangelho chama muitas vezes a atenção para isso.Olhai os lírios do campo, as aves do céu... A gratuidade do amor de uma mãe, o perdão e o amor aos inimigos, as bem-aventuranças e muitos outros apelos na vida de Jesus, dos santos e dos artistas não são da ordem da utilidade, do consumo, mas da beleza do outro para além de nós. O desprendimento dos bens materiais pelo voto de pobreza dos consagrados também é um forte testemunho no modo de considerar as coisas. Os próprios sacramentos, sinais eficazes do amor de Deus por nós, elevam a matéria, água, pão, vinho, óleo à dignidade da transmissão da vida divina ao ser humano.
Os místicos e os santos, assim como muitos artistas, interpelam-nos para a consideração da beleza da criação. O Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, Louvado sejas, Senhor, que deu o título a esta magna carta do Papa, é uma amostra de como precisamos de nos converter no modo de considerar e lidar com os bens da criação.
Deus Omnipotente, que estais presente em todo o Universo e na mais pequenina das vossas criaturas, Vós que envolveis com a vossa ternura tudo o que existe, derramai em nós a força do vosso amor para cuidarmos da vida e da beleza (n. 246).
† António Vitalino, bispo de Beja
07Julho2015
Cuidadores mandatados
1. Visão bíblica sobre o homem e o mundo
O Papa Francisco ao escrever uma encíclica sobre a ecologia não ultrapassou as suas competências ou quebrou as raízes da visão bíblica sobre o homem e a criação, abordando um tema da moda de alguns pensadores, tomando posição contra quem defende uma economia de mercado e um desenvolvimento ilimitado, sempre crescente, sem preocupação com o ambiente. Bem pelo contrário. Alguns querem empurrar a Igreja e os cristãos para a sacristia, para uma expressão da fé privada, fora do espaço público. A Bíblia não é um livro de ciência moderna, mas não deixa de ser uma leitura inspirada pelo Espírito Santo da vida do ser humano situado no planeta terra, lendo os acontecimentos da sua história na perspetiva da sua orientação para Deus.
A isto se refere o Papa no nº 63: Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade.
Por isso o Papa aponta, logo no segundo capítulo da encíclica, a visão bíblica do homem e do mundo, encontrando aí os fundamentos de uma ecologia integral, ou seja, do ser humano considerado em todas as suas dimensões e relações: consigo próprio, com o ambiente, com os seus semelhantes e com Deus. Desde o primeiro capítulo do livro do Génesis até ao último versículo do Apocalipse encontramos os fundamentos de uma atitude de respeito, de admiração, de gratidão e de amor do ser humano para com todos os outros seres. Ninguém deve viver para si mesmo. Viver para os outros implica cuidar e guardar tudo e todos os que nos rodeiam. Quer vivamos quer morramos devemos viver para o Senhor, confessa S. Paulo na carta aos Romanos (14, 7 ss). Um coração que ama nunca é indiferente a qualquer ser, seja humano ou de outra espécie (nº 91 s).
Neste capítulo o Papa dirige-se sobretudo aos cristãos, afirmando que é importante conhecerem as raízes da sua fé, para poderem dar o seu contributo para a presente crise ecológica que o mundo atravessa. Quem está empenhado na dignidade da pessoa humana e na procura da viabilidade de um desenvolvimento justo e para todos encontra na fé cristã as razões profundas para tal compromisso (nº 65).
A liberdade da pessoa não é absoluta. Realiza-se na relação harmoniosa com os outros seres e no respeito da sua dignidade, não lhe conferindo o direito de os usar como objetos ou escravos dos seus desejos egoístas e relativistas. A doutrina social da Igreja, de que tratei em notas anteriores, ajuda-nos a realizar esta relação harmoniosa com toda a criação.
2. A raiz humana da crise ecológica
No terceiro capítulo da encíclica o Papa fala das maravilhas da ciência e da técnica, mas que dão um tal poder ao homem que pode tornar-se escravo delas e envolver nessa escravidão toda a criação, truncando as relações essenciais e a hierarquia dos seres criados e dos valores da vida humana. Há um modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar (nº 101).
Todos nos recordamos das tragédias do século XX, em que todos os recursos da técnica foram usados para destruir o inimigo. Fizeram-se tratados para que isso não se repetisse, mas, de vez em quando, alguém põe de parte esses acordos e, no desespero de não conseguir impor a sua vontade e não tendo outros valores senão o poder, lança mãos dessas armas. O conhecimento e a técnica são usados para fazer valer projetos egoístas, destruindo e escravizando os pobres e os seus ambientes. O ser humano não foi educado para o reto uso do poder. O desenvolvimento científico e tecnológico precisa de ser acompanhado de uma sólida educação para os valores e a ética.
E qual é a base e o fundamento dessa ética, que orienta a liberdade dos poderosos para o reto uso dos meios ao seu alcance? Estamos todos de acordo em criar comissões éticas nas instituições mais sensíveis da sociedade, onde se lida com a vida e a morte, mas também todos conhecemos as decisões polémicas em muitos casos, para além da representatividade na constituição dessas comissões. O conhecimento técnico habituou-nos a tratar tudo como objetos manipuláveis e não como seres com a sua dignidade própria, que merece ser respeitada e tida em conta.
A economia, as finanças e até muitos políticos avaliam os seus procedimentos em função do mercado, do lucro, das audiências e dos votos, o que falsifica a vida e os valores. Um desenvolvimento que põe de parte a pessoa e o trabalho humanos não é moral. A vida consagrada dos monges, de um S. Francisco de Assis e de muitos outros através da história mostra-nos o valor do trabalho humano e ajuda-nos a compreender a beleza e a finalidade de toda a criação. A Igreja e esta encíclica do Papa Francisco também são um apelo profético, para que não embarquemos todos na voragem de um desenvolvimento sem limites.
Todos queremos viver melhor, com mais recursos, com mais saúde, por mais anos, mas não pode ser a qualquer custo, nem muito menos empurrando muitos para a pobreza e a miséria. O todo é superior à parte e a realidade à ideia, são princípios que o Papa repete, para nos ajudar a refletir e decidir. O homem não é senhor absoluto da criação, mas deve ser administrador responsável dos bens, pondo-os ao serviço do bem comum. Ainda estamos a tempo de corrigir desvios.
† António Vitalino, bispo de Beja
30Junho2015
Ecologia integral
1. Cuidar do mundo e dos outros
No dia da sua entrada solene como sucessor do apóstolo Pedro, a 19 de Março de 2013, o Papa Francisco convidava-nos a guardar Cristo nas nossas vidas, para guardar os outros, para guardar a criação, à semelhança de S. José. Isto significa ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos, aprendendo a descobrir nele a beleza de uma irmã e a ternura de uma mãe, como se exprimia S. Francisco de Assis. Não admira que dedique agora uma encíclica a este tema, com o título do conhecido cântico do Santo de Assis, Louvado sejas.
Há muito anunciada e esperada, tornou-se pública no dia 18 de Junho, convidando os cristãos e todos os homens de boa vontade a cuidar da casa comum, que não é apenas a natureza, mas todas as relações da pessoa humana consigo, com os outros e com Deus, o Criador de tudo e de todos.
A isto o Papa apelida de ecologia integral. Quando falha uma das relações, tudo e todos sofrem, pois estamos a amputar os seres existentes de alguns dos seus membros, sejam eles a terra, o ambiente, os animais, ou o ser humano.
A relação com o transcendente, Deus criador, sem o qual a vida não tem sentido, é importante. Sem ela, cada pessoa torna-se a norma de tudo, passando a viver para si e a partir de si mesma, desligada dos outros seres, sem o compromisso de cuidar e guardar o mundo, na sua biodiversidade, para que as gerações futuras o encontrem melhor e mais belo do que o encontramos nós.
Esta encíclica, mesmo abordando temas difíceis, lê-se com fluidez, como nos habituou o Papa Francisco. Sendo um longo escrito, com seis capítulos, a sua leitura não cansa e, caso as ocupações o permitam, lê-se dum fôlego. Começa por apresentar alguns dados da crise ecológica que estamos a viver, para, no capítulo segundo, desenvolver os princípios da tradição judaico-cristã e no terceiro capítulo procurar as causas profundas da situação atual no ser humano.
Depois passa às propostas de uma ecologia que integre o homem no seu lugar específico no mundo e às ações e atitudes que cada um pode fazer suas e assim inspirar também a política internacional. No sexto e último capítulo desenvolve algumas pistas de uma educação e espiritualidade ecológicas, apontando mesmo a necessidade de uma conversão ecológica.
Atendendo à urgência do tema e para ajudar a quem não dispõe do tempo necessário para ler esta magna carta do Papa sem interrupção, vou apresentá-la, na brevidade destas notas, capítulo por capítulo, começando já pelo primeiro.
2. Fizemos da nossa casa uma lixeira
No primeiro capítulo da encíclica o Papa faz um diagnóstico do nosso ambiente, alertando a todos para a necessidade urgente de mudar de paradigma de vida e de comportamento dos humanos, que são a causa principal da crise ecológica.
O Papa começa por afirmar que a mudança é necessária, mas o ritmo a que acontece não é o da lenta evolução biológica e nem sempre orientada para o bem comum e no sentido de um desenvolvimento humano integral e sustentável. Passa logo para a poluição dos ambientes, os resíduos e a cultura do descarte, que afeta sobretudo os pobres, que não têm meios para se defender das consequências perniciosas da evolução tecnocrática, muito dependente de energias fósseis e produtora de imensos resíduos.
O clima é um bem comum, cuja sanidade depende de muitos fatores. O aquecimento global, a devastação de florestas, a destruição dos ecossistemas, o degelo dos glaciares, a subida do nível dos oceanos estão a provocar grandes catástrofes, de consequências gravíssimas para a saúde e a sobrevivência das futuras gerações, sendo os mais pobres, pessoas e países em vias de desenvolvimento os mais afetados, presentemente e nas próximas décadas. O fenómeno das migrações de pessoas e espécies vai agravar-se ainda mais.
Um dos graves problemas atuais é a questão da água potável, um bem essencial para a vida das pessoas, que, com a privatização das suas fontes começa a sujeitar-se às leis do mercado. Este é um problema que nas políticas públicas de privatizações deve ser tido em conta. Não podemos comparar a água potável e outros recursos essenciais para a subsistência da humanidade a outros bens, importantes, mas não imprescindíveis para a vida de todos.
O Papa afirma: o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos (nº 30). Negar aos pobres o acesso à água potável é negar-lhes o direito à vida, radicado na sua dignidade inalienável. Há quem afirme que isto será uma das grandes fontes de conflitos no mundo.
Outro tema é a preservação da biodiversidade, posta em causa com a destruição de ecossistemas importantes para certas espécies de vida, cuja beleza as gerações futuras não poderão contemplar e necessárias para o equilíbrio das energias do planeta.
Com a desertificação demográfica do interior e os grandes aglomerados populacionais no litoral e nas grandes metrópoles também
se degrada a qualidade de vida humana e a coesão social, sendo os pobres aqueles que mais sofrem com isso. O ruído acústico e mediático dificulta a cultura do encontro e do diálogo, essencial para a construção da família e das relações humanas. Além disso, com a poluição dos rios, dos oceanos e dos terrenos agrícolas aprofunda-se o fosso das desigualdades, destruindo os meios de sustento dos mais pobres. Há uma dívida ecológica dos países desenvolvidos do Norte para com o Sul. Como pagá-la?
† António Vitalino, bispo de Beja
Convivência na diversidade
1. Emigrantes e cidadania
No dia 7 de Junho realizou-se um referendo no Luxemburgo para saber a opinião dos luxemburgueses sobre vários assuntos, sendo um deles sobre os direitos políticos dos estrangeiros, que são cerca de 46% da população do Luxemburgo, sendo 16% portugueses. O resultado deste referendo exclui os estrangeiros do direito de voto, mesmo os provenientes de países da Comunidade Europeia. Tratando-se de um país da Comunidade Europeia, que tem como objetivo a livre circulação de pessoas e mercadorias, penso que foi um passo atrás na construção da Comunidade. A livre circulação, que se limite aos direitos de residência e trabalho, não é perfeita. Não pode haver cidadãos de primeira e de segunda.
Na última nota refletia sobre a língua como a nossa pátria. Mas não pode ser o único critério de cidadania, embora importante e fundamental. Os cidadãos comunitários, ao mudar do país de origem para outro da Comunidade, após um tempo de adaptação e integração, não devem continuar a ser considerados como estrangeiros, apenas como mão-de-obra, mas cidadãos de pleno direito, sendo um deles a escolha dos seus representantes no país onde trabalham e vivem. Em vários países da Comunidade já é possível exercer esse direito, desde que se esteja inscrito nos cadernos eleitorais desse país. Compreende-se a reação dos luxemburgueses, que estão na iminência de serem minoritários no seu próprio país, mas isso não justifica a decisão popular. Ainda bem que os seus governantes digam que irão respeitar esta decisão, mas tudo farão para, no futuro, tentarem mudá-la.
Mas, por outro lado, aos direitos correspondem deveres de cidadania. A maioria dos nossos emigrantes ainda não adquiriu esta consciência e daí ficarem indiferentes a este referendo. Resta-nos um longo caminho de consciência e integração comunitária a percorrer. Todo o sistema educativo, os governos, as instituições culturais, sociais e religiosas, assim como os meios de comunicação social devem dar o seu contributo para formar esta nova cidadania europeia.
A Igreja, desde os seus inícios evangélicos que forma as consciências dos cristãos para a liberdade dos filhos de Deus, onde não pode haver acepção de pessoas, nem escravos ou estrangeiros, mas concidadãos. Este é também o tema da Mensagem papal para o Dia Mundial do Migrante e Refugiado deste ano: Igreja sem fronteiras, Mãe de todos.Inspirado nesta Mensagem é também o lema da Semana das Migrações de 9 a 16 de Agosto deste ano e da peregrinação dos migrantes a Fátima, a 12 e 13 de Agosto: Igreja sem fronteiras, somos um só corpo. Apesar dos contratempos e obstáculos não desistamos do caminho.
2. Convivência pacífica na diversidade
No Sábado, dia 6, o Papa Francisco visitou Sarajevo, na Bósnia Herzegovina, onde há poucos anos aconteceu uma guerra civil violenta, com muitos refugiados e mortes, território muito disputado pela Croácia e pela Sérvia, que antes faziam parte da Jugoslávia, que, após a queda do muro de Berlim, se foi esboroando e dando origem a vários países, uns com maioria da população católica (Croácia) ou ortodoxa (Sérvia), outros com mistura de várias etnias e religiões: muçulmanos, judeus, ortodoxos, católicos, etc. O Papa tem procurado visitar países onde há diversidade de etnias e religiões, como a Bósnia, a Albânia, a Turquia, a Palestina, etc., para acentuar a necessidade de construir a paz no respeito pela diferença e na convivência pacífica entre as diferentes etnias e religiões.
Nos seus discursos acentua este aspeto e exorta os ouvintes a saber perdoar, para construir um futuro de paz, que possibilite o desenvolvimento. Isto não quer dizer que se deva esquecer ou pôr de parte a história, mesmo que trágica. Lembrar os horrores da guerra, para não os repetir, não por medo, mas porque se deseja o bem de todos, procurando caminhos de perdão e reconciliação, no respeito pelas diferenças étnicas e religiosas. O choque das civilizações ou das religiões não pode acontecer. Como cristãos devemos tudo fazer para que se construa uma nova civilização, baseada no amor, no perdão, na reconciliação, na misericórdia, onde as diferenças passam a ser uma riqueza e não um motivo de conflito.
Estou convencido que o verdadeiro choque de civilizações poderá ser motivado pelas crescentes desigualdades entre países pobres e ricos e dentro do mesmo país o fosso entre ricos e pobres. As desigualdades económicas, visíveis e sensíveis aos olhos de todos, geram conflitos. Muitos aproveitam-se de credos religiosos para justificar a luta pelo poder. Como diz frequentemente o Papa Francisco e Bento XVI também o afirmava, ninguém pode invocar Deus para fazer guerra. Deus é Pai de todos e não quer ver os seus filhos desavindos. Invocá-lo para fazer a guerra é um sacrilégio, uma blasfémia.
Para um cristão, que se diz discípulo de Jesus Cristo, isso nunca pode acontecer. Ele mandou-nos amar e perdoar aos inimigos e a nunca retribuir o mal com a mesma moeda. Várias bem-aventuranças realçam esta atitude dos seus verdadeiros seguidores. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus... (Mt 5, 7 ss). O Ano Jubilar da Misericórdia que se avizinha ajudar-nos-á a fomentar a reconciliação baseada no amor misericordioso.
† António Vitalino, bispo de Beja
9JUN2015
A LÍNGUA É A NOSSA PÁTRIA
1. Português entre os emigrantes
Dentro de dias vamos celebrar mais um Dia de Portugal, das Comunidades e de Camões. Noutros tempos designava-se simplesmente Dia de Camões, o grande cantor da língua portuguesa. No contacto com os nossos emigrantes em países com idiomas muito diferentes do português compreendo bem o sentido e a força da expressão de outro nosso grande poeta, Fernando Pessoa: a língua é a nossa pátria.
Nos meus contactos com as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo e com os seus agentes pastorais, padres, diáconos, catequistas e outros colaboradores noto a força da nossa língua para fomentar os laços da família e das comunidades. A transmissão dos afetos, da fé e dos valores familiares e cristãos é mais eficiente quando se faz na língua das origens da família. Embora as novas gerações já frequentem ou frequentaram as escolas dos países onde residem e para a conversação entre elas usem o idioma da escola, no entanto os valores e afetos têm uma expressão que não passa só por palavras nem por formulários, mesmo que sejam orações tradicionais. Quando nos zangamos ou exprimimos sentimentos de amizade, não é apenas a expressão do rosto que fala. Também surgem as palavras correspondentes que ouvimos e aprendemos no colo ou no berço. Daí a importância da aprendizagem da língua da nossa família, para crescermos e fortalecermos a nossa identidade. Quem não faz esta experiência pode acabar por viver inseguro, sem pátria.
Sei que o cristão é cidadão do mundo. Em toda a parte é concidadão e não estrangeiro. Mas esta maturidade da vida humana e cristã passa por várias fases, pelo diálogo com a diferença. A diversidade acaba por tornar-se uma riqueza na maturidade da vida. Os emigrantes que têm a possibilidade de crescer e desenvolver-se neste sentido acabam por constituir os cidadãos adultos do futuro e construir a sociedade sem fronteiras, mas não sem pátria.
As missões e associações de língua portuguesa, com os seus movimentos e atividades próprias, como catequese, celebrações, ranchos, escolas de formação e aprendizagem da língua portuguesa e do idioma do país de residência são uma grande riqueza para ajudar neste desenvolvimento de inclusão e maturidade, em que cada um contribui com o melhor de si. Aproveito para agradecer a todos, agentes pastorais, instituições e associações das comunidades de língua portuguesa espalhadas pelo mundo, que ajudam as novas gerações a conhecer as suas raízes e a integrar-se no país de residência. Estão a dilatar a pátria pelo mundo e a ajudar ao aparecimento da nova sociedade, onde todos são concidadãos e não estrangeiros.
2. Contributo das comunidades portuguesas
A Comunidade europeia surgiu da inspiração de grandes políticos cristãos depois da experiência trágica da segunda grande guerra, cujo fim foi há 70 anos, assinalados com grande pompa sobretudo nos países que dela foram cenário. Direta ou indiretamente toda a humanidade sofreu as suas desastrosas consequências.
Todos queremos a paz, mas nem todos a sabem construir no dia a dia. A Comunidade europeia como espaço de mobilidade e de aceitação das diferenças ainda tem muito que aprender e realizar em ordem à integração harmónica de todos os que vivem no seu espaço, mas também dos muitos que a procuram para aí viver e contribuir para o seu desenvolvimento económico e social. Ainda há muitos que são marginalizados ou ficam pelo caminho, porque não conseguem encontrar o seu lugar nesta sociedade.
Todos, também as comunidades cristãs, devem dar o seu contributo para a construção dessa sociedade de concidadãos e não de estrangeiros. Precisamente sobre este contributo vou deixar aqui um último pensamento. Como podem as nossas comunidades de língua portuguesa espalhadas pelo mundo contribuir para a construção de uma nova cidadania, sem fronteiras, na riqueza da diversidade de línguas e culturas?
Afirmamos que Deus criou a humanidade, com a diversidade de cores e línguas, mas também alguém disse que os portugueses criaram a mestiçagem. Nisto reside a nossa riqueza. Saber viver e conviver com todo o ser humano. Isto tenho observado nas nossas comunidades, onde convivem pessoas provenientes dos diversos países de língua portuguesa e também de outras línguas, mas que gostam da nossa maneira de ser, simples e sem complexos.
Como membro da Comissão episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana agradeço a Deus esta capacidade e faço votos para que continue e se aprofunde, dando assim um precioso contributo para o surgimento de uma nova sociedade, de conivência pacífica de cidadãos de várias proveniências. Que os diversos agentes pastorais, sejam de que país for, sejam bem acolhidos e saibam ajudar a desenvolver esta capacidade.
† António Vitalino, bispo de Beja
2 de Junho de 2015
Ensino Superior e internet
1 - Bênção das Pastas em Beja
No dia 23 de maio Beja voltou a ser palco de uma bênção de finalistas, vulgarmente chamada de bênção das pastas das várias escolas do ensino superior do Instituto Politécnico, que trouxe à cidade sempre pacata milhares de pessoas de todo o país. Embora por poucas horas, este é o evento que, depois da Ovibeja, mais gente traz a esta capital de distrito. Nestes meus 16 anos como bispo de Beja, foi a primeira vez que este acontecimento se realizou no recinto do Instituto, dado que o pavilhão multiusos da feira de Beja, onde nos últimos anos se realizava esta festa, não reunia condições acústicas para uma celebração festiva litúrgica. Foi também a primeira vez que consegui proclamar a homilia que tinha preparado, apesar de a maioria das pessoas ficar ao sol e de pé.
Na homilia desenvolvi alguns pensamentos que julgo de importância para ajudar estes jovens que terminaram os seus cursos a construir uma sociedade menos desigual, mais fraterna, justa e ecológica.
Comecei por interrogar os finalistas se estavam convencidos que os seus respetivos cursos os ajudariam a orientar a sua vida e a contribuir para o progresso da sociedade, não apenas na área tecnológica, mas em todos os sentidos da vida humana. Por isso exortei-os a não procurar apenas uma realização pessoal na área económica, mas a desenvolver as capacidades na área das relações entre as pessoas e a natureza. A não procurar um desenvolvimento egoísta e de exploração da dignidade do ser humano e de espoliação da natureza do meio ambiente, exortando-os a ler a encíclica papal sobre a ecologia, que, dentro de dias, será publicada.
Ao pedir à Igreja a bênção para as suas pessoas e os seus cursos, agora finalizados, mostraram que querem construir as suas vidas e desempenhar as mais variadas profissões e missões, baseados em fundamentos mais sólidos e seguros que o dinheiro, os vencimentos chorudos, os bons empregos. No evangelho ouviram o conselho de Jesus, para construirmos a nossa casa, o nosso futuro sobre a rocha, e não sobre a areia da mentira, da injustiça, da corrupção, da exploração da natureza e das pessoas, sem respeito pela sua beleza e dignidade.
A rocha é a verdade, o amor, personificados na pessoa de Jesus Cristo. É o bem dos outros, o tornar o mundo e a convivência humana mais bela, harmoniosa, respirável, baseada no respeito e na confiança mútua, na solidariedade, na entreajuda.
Ao mesmo tempo, usando palavras de S. Paulo, exortava-os a ser agradecidos a todos os que contribuiram para a sua formação, professores, funcionários e famílias e a por o amor, que é o laço da perfeição, acima de tudo.
2 - Internet ao serviço da formação
Nesta bênção participaram alunos de um curso novo, muitos dos quais se encontravam pela primeira vez em Beja. Trinta e um finalistas do curso de solicitadoria, todo ele dado e frequentado pela internet, com exceção do exame oral, importante para os professores verificarem se os alunos compreenderam as matérias sem recurso ao plágio na internet, como me dizia um dos professores.
Assim muitos alunos, já na vida ativa e com família constituída, puderam formar-se numa área da sua escolha, sem ter de abandonar os seus empregos e as suas famílias. Estes finalistas convidaram-me para partilhar a sua refeição. Com os seus familiares e amigos eram mais de duzentas pessoas, vindas de todo o país, do norte às ilhas, que pareciam velhos amigos, conhecedores das capacidades e profissões uns dos outros.
Uma vez mais fui confirmado nos benefícios da internet, usada para transmitir conhecimentos e capacidades e habilitar pessoas a serem elementos válidos para o desenvolvimento da sociedade, ao mesmo tempo que lhes confere um grau de satisfação elevado, pois puderam aprofundar áreas de que gostavam, mas que sem a internet não teriam conseguido.
Convidado a abençoar estes e outros finalistas, também eu agradeci a Deus e ao Instituto Politécnico de Beja, numa altura de crise económica, que se reflete nas escolas e nas famílias, ter sido criativo e útil à sociedade desenvolvendo processos de aprendizagem mais económicos e acessíveis aos portugueses espalhados pelo território português e pelo mundo.
Também nós na Igreja precisamos de sistematizar os nossos recursos, para desenvolver as capacidades de participação de todos na vida da Igreja e da nossa diocese. Alguns dicastérios da Cúria romana já funcionam com este recurso da internet, mas ainda precisa de ser ajustado às diferentes realidades dos diversos continentes e países. Isto para não falar da realidade na diocese, onde a comunicação pode ser ainda muito melhorada, de modo a torná-la eficaz, bem como a informatização dos nossos processos. Desenvolvemos ferramentas de intercomunicação, mas, porque poucos as usam, tornam-se ineficazes. Sabemos que os recursos informáticos, sem o uso adequado ao nosso ministério e em rede, são esbanjamento de tempo e de dinheiro, de que teremos de dar contas a Deus e ao povo para que fomos chamados e enviados.
Nunca usei a informática para brincar com jogos, mas sempre para o trabalho. Mas gostaria de sistematizar esses recursos e por tudo a serviço da missão eclesial, em função dos objetivos pastorais que formulamos nos nossos planos diocesanos, cuja aplicação no concreto das nossas vidas em muitos aspetos não se realiza. Oxalá o Sínodo diocesano, que vai entrar no seu quarto e último ano, nos ajude a recuperar algumas das potencialidades destes meios, ao alcance de todos, mas com aplicação e esforço de todos.
† António Vitalino, bispo de Beja
25MAI2015
Supremo princípio da doutrina social da Igreja
1. Conflitos e reconciliação
Nas últimas semanas escrevi algumas notas sobre os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja, um precioso património para aplicar a justiça na convivência pacífica dos povos e na coesão social das democracias. Tratando-se de vários princípios, estão todos orientados para a realização da dignidade da pessoa humana, na sua singularidade e nas múltiplas relações em que está inserida. Apesar de tudo, mesmo aceitando esses princípios, nem sempre se está de acordo na sua aplicação. Daí surgem divergências, por vezes violentas, e o recurso a árbitros e tribunais, cujas sentenças podem divergir e deixar insatisfeitas as partes em oposição. Nas últimas semanas os meios de comunicação falam muito de violência nas famílias, nas escolas, nas empresas, em alguns países, da fuga de milhares de pessoas à guerra, à fome, enfrentando inúmeras adversidades e até a morte, etc. Agora que se aproximam as eleições legislativas começa a sentir-se muita violência verbal entre os partidos. Espero que não chegue a vias de facto, de modo que se torne possível criar consensos, para viabilizar um governo.
Estaremos condenados a não nos entendermos e serão os conflitos e guerras violentas um destino inevitável? Embora nem todos acreditem e se orientem pela pedagogia de Jesus Cristo, que a Igreja deve seguir e praticar, vou lembrar aqui a razoabilidade de seu conselho, ou mesmo preceito: sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso (Lc 6, 36). Este preceito é exemplificado de muitas maneiras, como na resposta de Jesus à pergunta do apóstolo Pedro sobre quantas vezes se deve perdoar: até setenta vezes sete, ou seja, sempre (cf. Lc 17, 4).
S. Paulo diz isto mesmo no belo hino à caridade (1 Co 13, 1 ss):se não tiver amor, nada sou. A caridade, no sentido que Jesus a viveu, dando a vida pelos seus inimigos, é realmente o vínculo da perfeição.
O Papa Francisco acaba de convocar a Igreja para um Ano Santo da Misericórdia e lembra-nos tudo isto de muitos modos. No dia 8 de Dezembro, solenidade da Imaculada Conceição, padroeira e rainha de Portugal, lembrando o 50º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II, o Papa abrirá a Porta Santa na basílica de S. Pedro. Nas dioceses também haverá Porta Santa, nas catedrais e santuários de maior afluência de peregrinos, para possibilitar a todos os católicos usufruir dos benefícios do Ano Santo, sem ter de ir a Roma. Será aberta no domingo seguinte, no 3º domingo do Advento, a 13 de Dezembro.
Como vamos aproveitar na diocese este Ano Santo? Estamos a celebrar um Sínodo e será o último ano e também o meu último à frente desta diocese de Beja. Vem a propósito este Ano Santo sobre a misericórdia, pois ela define o modo como Jesus entendeu a sua missão e como a Igreja a deve continuar. Por isso espero que nos preparemos bem para o viver.
2. Mensageiros da misericórdia
Jesus começou a sua pregação apropriando-se das palavras do profeta Isaías sobre a missão do Messias (Lc 4, 18 ss): O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor. Assim proclamou Jesus na Sinagoga de Nazaré, mas os seus conterrâneos ficaram escandalizados e por isso Ele foi para as periferias existenciais da sociedade do seu tempo anunciar e cumprir a proximidade do Reino de Deus. Se lermos os evangelhos, ficamos a compreender o que tudo isso significa e também o que deseja o Papa Francisco com as suas palavras e gestos e agora com a convocatória do Ano Santo.
Na Bula Rosto da Misericórdia ele sugere várias atitudes e ações e pede a toda a Igreja, às dioceses, para não se limitarem a celebrações litúrgicas, embora estas devam acompanhar e coroar toda a missão da Igreja. É altura de proclamarmos e praticarmos a misericórdia, sobretudo para com os pobres, os marginalizados, os pecadores, exercitando todas as obras de misericórdia, não apenas as sete corporais (dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos; enterrar os mortos), mas também as sete espirituais (dar bom conselho;ensinar os ignorantes; corrigir os que erram; consolar os aflitos;perdoar as injúrias; sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; rogar a Deus por vivos e defuntos).
Neste elenco estão compendiadas as boas obras, os frutos do nosso amor a Deus e ao próximo, segundo as quais seremos julgados, de acordo com o capítulo 25 do evangelho de S. Mateus. Tudo passa, só o amor de Deus fica. Ou, como se exprime S. João da Cruz: na tarde da nossa vida seremos julgados pelo amor.
De acordo com esta doutrina muita coisa tem de mudar na vida dos cristãos, na família e na pastoral da Igreja. O amor é sempre próximo e concreto. Não pode ficar em palavras ou retórica. Tem de se assemelhar ao do bom samaritano, ao de Jesus. Precisamos todos de nos converter e recorrer ao sacramento da misericórdia de Deus, a confissão, e procurar por em prática a penitência salutar, usando de misericórdia, perdão e reconciliação, como Deus usa connosco.
† António Vitalino, bispo de Beja
18MAI2015
Propriedade e uso dos bens da terra
1. Destinação universal dos bens da terra
Há anos, numa comunidade de base do nordeste do Brasil, fui interpelado por vários participantes, pedindo para que a hierarquia da Igreja assumisse o lado dos sem terra e enfrentasse os grandes latifundiários que registaram terrenos imensos, expulsando do seu território os índios e negando a possibilidade aos pobres de construírem as suas casas nessa área. Este episódio fez-me pensar sobre um dos princípios da doutrina social da Igreja, a que até então dava pouca importância, ou seja, a destinação universal dos bens da terra e a sua relação com a propriedade privada, a liberdade e o trabalho.
Na verdade, a visão bíblica e cristã do ser humano e da sua relação com a terra diz-nos que Deus confiou o mundo aos cuidados do homem, para dele tirar o seu sustento e torná-lo belo e habitável (Gen. 1, 26 ss). Portanto trata-se de um uso transformador dos bens da terra e não duma posse absoluta como proprietário e senhor. A propriedade não é um princípio absoluto, mas está em função do seu uso em ordem à alimentação e ao exercício da liberdade e da expressão da dignidade da pessoa, tendo em conta o bem comum e a solidariedade com os mais frágeis. Esse cuidado e transformação da terra pelo trabalho cria uma relação da pessoa com os bens daí resultantes, conferindo-lhe uma certa propriedade, mais no sentido do uso e administração desses bens que no sentido de posse individual e absoluta. Esta relação não é nem a dos sistemas dos Estados de ditadura socialista nem a do capitalismo selvagem. O papel da autoridade do Estado é no sentido da regulação equitativa e justa dos bens da criação em ordem ao bem comum de todos, evitando que alguns se apropriem deles de modo individualista, impedindo que outros retirem também deles o seu sustento e bem-estar através do trabalho.
Encontrar o equilíbrio entre a posse egoísta e um socialismo coletivista nem sempre é fácil. Nisto se manifesta a inteligência humana e o sentido do bem comum. A propriedade não pode ser arbitrária. Tem uma função social, garantindo trabalho e alimento não apenas para os seus proprietários, mas contribuindo para o bem da sociedade, direta ou indiretamente. Poderíamos lembrar neste sentido a parábola evangélica dos talentos (Mt 25, 14 ss), em que o Senhor elogia aqueles que os souberam fazer render e incrimina e apelida de servo mau e preguiçoso aquele que enterrou o que recebeu, não o fazendo render. Somos, pois, administradores dos bens da criação e não senhores absolutos.
2. Desprendimento e Pobreza dos consagrados
Estamos a viver um ano dedicado à vida consagrada, ou seja daqueles e daquelas que renunciaram livremente à posse dos bens, à constituição de família biológica e à autonomia da sua vontade nas escolhas dos seus projetos de vida, professando os votos de pobreza, castidade e obediência, imitando assim de perto o estilo de vida de Jesus, obediente até à morte e morte de cruz. Esta vocação e este testemunho na vida da Igreja é essencial, pois aponta para a caducidade dos bens materiais e para o único absoluto, que é Deus.
Já na primeira comunidade cristã de Jerusalém havia o testemunho de quem se desprendia dos bens em favor dos pobres, de modo que entre eles ninguém passava necessidade (Act. 2, 44 ss). Mas foi sobretudo a partir do século IV que se formaram as comunidades monásticas, em que tudo era comum, não apenas os bens materiais, mas também os espirituais. O lema de S. Bento, pai do monaquismo ocidental, permanece um modelo e um desafio para toda a vida consagrada: ora et labora, reza e trabalha. Foram estes monges que evangelizaram a Europa e construíram as raízes de uma Europa unida não pela força dos exércitos e das armas, mas pela fé e fraternidade, baseadas na oração e no trabalho comunitários.
O modo radical de viver a fé e seguir a Cristo expresso pelos consagrados é um testemunho importante num mundo dominado pelo poder financeiro da economia liberal, em que a dignidade da pessoa humana e a sua dimensão espiritual são secundarizadas. Esta economia mata, diz o Papa Francisco. Mata a dignidade da pessoa, os valores da liberdade, da igualdade, da fraternidade e marginaliza os pobres, os débeis, os frágeis. Este uso egoísta da propriedade e dos bens da criação não é evangélico nem cristão. A comunidade europeia não terá futuro, se não se abrir a estes valores do espírito, orientando os seus recursos e a sua economia, tendo em conta os valores que os consagrados vivem de modo livre e radical. Mas o Ano da Vida Consagrada deve lembrar aos próprios consagrados o primitivo fervor e a alegria da sua profissão dos conselhos evangélicos, pois também eles correm o risco de se deixar contaminar pelo materialismo reinante.
Aproxima-se a solenidade do Pentecostes e invocamos para a nossa Igreja o dom do Espírito Santo, para que nos torne testemunhas destemidas e alegres do amor de Jesus Cristo, que a todos quer salvar, tornando-nos mais fraternos e amigos de ajudar, sobretudo aqueles que a sociedade marginaliza, pois Deus não faz acepção de pessoas, mas olha com preferência para os mais pobres.
† António Vitalino, bispo de Beja - 11MAI2015
Crise e solidariedade
1. Direito ao trabalho e diálogo laboral
No dia 1 de maio comemora-se o Dia Internacional do Trabalhador, acontecimento marcante na defesa da dignidade e dos direitos dos trabalhadores. Na atualidade, com muitos desempregados e de grande precariedade, temos que lutar sobretudo pelo direito ao trabalho.
Aprendi em pequeno que é preciso ganhar o pão com o suor do rosto e que a ociosidade é mãe de todos os vícios. Numa sociedade complexa, mas organizada, em que a maior parte das pessoas exerce uma atividade dependente, quando as empresas perdem o mercado para os seus produtos, recebe-se o fundo de desemprego. Mas as pessoas desempregadas, ficando sem trabalho, correm o perigo de cair em vícios, alguns deles destrutivos da personalidade, do agregado familiar e do tecido social, de que dificilmente se regeneram.
Então, como ultrapassar esta situação sem degradar os ambientes? Esta é uma pergunta que muitas vezes me faço e para a qual nem sempre encontro respostas. Uma sociedade com muito desemprego e de baixos salários e reformas vai hipotecando o seu futuro. Por isso não se pode aprovar qualquer tipo de modernização de empresas, para as tornar mais rentáveis, diminuindo os postos de trabalho e lançando para o desemprego pessoas que dificilmente encontrarão outra ocupação. Não basta assegurar o fundo de desemprego por um determinado tempo. É preciso olhar também aos problemas humanos, à dignidade das pessoas, à paz social, ao bem das famílias.
A solidariedade não pode ser apenas do tipo assistencialista. Tem de ter em conta a promoção e ocupação das pessoas. Por isso, Estado, empresas, associações e pessoas têm de procurar soluções justas, não olhando apenas ao lucro, ao mercado, mas sobretudo aos direitos humanos. Esta economia mata, diz o Papa Francisco dos sistemas da economia liberal que apenas olham ao lucro, ao mercado.
Uma boa articulação de todos os intervenientes em alturas de crise económica é a prova da maturidade de uma sociedade, em que ninguém é marginalizado em prol de alguns ou se arruínam empresas por causa dos interesses do grupo mais forte. Sem querer dizer nomes, para não pressionar nenhuma das partes, parece-me que nem sempre se tem em conta o bem comum e a viabilidade das empresas.
Nestas alturas não se pode cortar o diálogo. É por ele que manifestamos a nossa maturidade e inteligência. Será por ele que seremos criativos e encontraremos soluções viáveis para ultrapassar as crises para bem de todos, não apenas de um grupo. Sobretudo em tempo de crise precisamos de usar todas as nossas capacidades para nos entendermos, tendo em conta o bem comum de todos e cada um. As empresas e as sociedades que deixam de dialogar em ordem ao consenso estão a minar o seu futuro e a prejudicar a todos. Mesmo no direito à greve nunca se deve por de parte o bem comum. É preciso ponderar os prós e os contras e ver se não estamos a fazer sofrer e a deteriorar todo o tecido social, pessoas, famílias e sociedade, para defender interesses de grupos e classes.
2. Solidariedade para ultrapassar as crises
Um dos princípios da doutrina social da Igreja (DSI) é a solidariedade, em articulação com todos os outros princípios. Nem sempre é possível salvar os postos de trabalho e as empresas sem mercado. Mas neste panorama é preciso salvar as pessoas, pois são o elo mais importante, mas por vezes o mais frágil.
Nas relações humanas e laborais não podemos refugiar-nos numa atitude egoísta e individualista, mas aprender a entrelaçar as nossas vidas com as dos nossos semelhantes. S. Paulo recomendava aos cristãos que não deviam ser devedores de nada a ninguém a não ser do amor, que nunca se paga, pois é gratuito. Esta experiência da gratuidade está na base da solidariedade, que põe o bem do outro acima do seu próprio. Uma sociedade que não exercita atitudes de solidariedade, de gratuidade, torna-se fria e desumana. Sem solidariedade não é possível qualquer tipo de vida social, em que a dignidade das pessoas seja respeitada.
Em tempos de crise torna-se mais necessário que nunca exercitá-la, não no sentido de tornar as pessoas frágeis dependentes de nós, mas de ajudá-las a recuperar a sua dignidade e autonomia. Por isso nunca pode ser de tipo assistencialista. Mesmo o pobre tem a sua dignidade e dá-nos a capacidade de fazer o bem, de crescermos na capacidade de nos relacionarmos com quem não nos pode retribuir na mesma moeda, mas com o tesouro do amor, que nem a ferrugem nem a traça corroem (Mt 6, 19).
Nesta atitude se funda o verdadeiro voluntariado solidário, tão necessário numa sociedade em crise. As obras de misericórdia são expressões da solidariedade, da gratuidade e da verdadeira essência do ser humano, criado para amar e ser amado. Oxalá o ano jubilar da misericórdia, anunciado pelo Papa Francisco com início a 8 de dezembro do corrente ano, nos estimule a sermos mais solidários e misericordiosos neste tempo de muita indiferença e esquecimento dos irmãos mais frágeis, as crianças, os idosos, os imigrantes, os deficientes.
† António Vitalino, bispo de Beja
28 de Abril de 2015
Políticos e Bem comum
1. Bispos interpelam políticos
De 13 a 16 de abril estiveram reunidos em Fátima os bispos de Portugal, a refletir sobre diversos assuntos da atualidade na Igreja e na sociedade portuguesa.
Hoje chamo a atenção para um parágrafo do comunicado final, que alerta para o clima eleitoral que se avizinha: “A sociedade ganharia se tivesse em conta princípios do pensamento social cristão, tão acentuados na programática exortação apostólica «A Alegria do Evangelho» do Papa Francisco. Causas essenciais como o respeito pelo bem comum, pelos princípios da solidariedade e da subsidiariedade, pela vida empresarial criadora de trabalho e da riqueza, pela justa promoção social dos pobres, pelo apoio aos mais frágeis, em particular os nascituros, às mães gestantes e às famílias deveriam constar nas propostas concretas e consistentes dos partidos e candidatos”. No nº 205 desta Exortação o Papa escreve: “Rezo ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho digno, instrução e cuidados de saúde para todos os cidadãos”.
Isto significa que os cristãos capacitados devem participar no debate político e, através dos partidos que sintonizam com a doutrina social da Igreja, proporem-se como candidatos ao poder democrático e, uma vez eleitos, não porem de lado esses princípios.
Apesar de nenhum dos partidos da área da governação poder reclamar para si a sintonia perfeita com os princípios da doutrina social da Igreja, também não é necessário fundar nenhum partido democrático cristão. A perfeição é um objetivo de toda a vida, mas ninguém pode reclamar para si a sua plenitude. Na referida exortação o Papa expõe quatro critérios da realização do bem comum e da paz social. O primeiro é precisamente a afirmação de que o tempo é superior ao espaço.
Precisamos de lançar as boas sementes, ter paciência e esperar que penetrem na terra, apodreçam, desabrochem, cresçam e se fortaleçam, no meio do joio, das ervas daninhas e dos conflitos e possam dar bons frutos de convivência fraterna, em que ninguém é marginalizado e excluído. Mesmo os cristãos precisam de resistir à tentação de criarem guetos, cantinhos e grupos aparte, espaços dos bons e dos santos. Isto seria o contrário do que Jesus apregoou e viveu: é preciso ser luz, fermento, sal e estar preparado para sofrer por causa da paz, do amor. No meio de tudo isso alegremo-nos e sejamos felizes por termos sido achados dignos de sofrer por causa do Reino, pela boa causa da paz, pela construção de uma sociedade justa e fraterna.
2. O bem comum
Um dos princípios fundamentais da doutrina social da Igreja (DSI) é o bem comum. Mas como se coaduna este princípio com a tendência individualista e egoísta dos indivíduos? A defesa perante os agressores e o instinto de conservação não são possíveis sem a abertura aos outros, a união de forças, sem exclusão de ninguém. Uma antropologia personalista não é possível sem abertura aos outros, ao transcendente e ao Outro, sem consenso no bem comum do todo. Aqui podemos aplicar o quarto critério apontado pelo Papa para a realização da paz social: o todo é superior à parte. Mas isso não significa a ditadura do totalitarismo, mas uma atenção profunda à diversidade e ao bem de todas as partes.
Os governantes, democraticamente eleitos, precisam de estar habilitados para orientar as capacidades e esforços de todas as partes em ordem à melhor realização do bem comum, e não apenas de determinado grupo de amigos ou do grupo eleitoral. É significativa a expressão, quase sempre usada por todos os vencedores de eleições democráticas: a partir de agora governaremos para todos os portugueses. É difícil isso acontecer, pois os lobbies e os boys pressionam para receber a sua recompensa. No entanto, se alguma acepção de pessoas pode e deve ser feita é a opção preferencial pelos pobres, em ordem a criar uma sociedade inclusiva, onde reine a paz social.
Isto não quer dizer que se deixe de estimular quem investe na produção de riqueza. Mas como fazê-lo sem marginalizar os menos capacitados, sem criar guetos de pobres e excluídos? Sobre esta arte de bem governar, em ordem a criar uma sociedade inclusiva, onde reina a paz social, o bem-estar possível e o desenvolvimento integral de todos, voltaremos a refletir ao abordar outros princípios da doutrina social da Igreja, pois todos se implicam na realização do bem comum de um país e da comunidade internacional.
Hoje, o bem comum não pode ter fronteiras, países e continentes pobres ao lado de outros ricos e fechados sobre si no seu bem-estar. Por isso, o assim chamado primeiro mundo não pode assistir impávido ao radicalismo islâmico e aos milhões que fogem à fome e à guerra, morrendo muitos deles nas águas do mediterrâneo.
Tem razão o Papa Francisco e o governo italiano quando apelam para que toda a Europa ajude a encontrar soluções para estes problemas, que não são apenas de um pais, mas de todos. As nossas fronteiras não podem ser cemitérios dos pobres em fuga à fome e à guerra. O bem comum não pode ser apenas o de um país. É preciso globalizar a solidariedade e não apenas a economia e a informação. Difícil e honrosa tarefa para os políticos do futuro.
† António Vitalino, bispo de Beja
20/04/2015
Mensagem de Páscoa dos Bispos de Beja
Anunciemos a Páscoa do Senhor!
Caros diocesanos e amigos:
Da parte do Senhor que nos colocou no meio de vós e à vossa frente como pastores queremos convidar-vos a celebrar e a viver uma Páscoa autêntica.
Desculpai se começamos esta mensagem com algumas perguntas: chegamos à Páscoa trazidos por um percurso quaresmal de conversão a Cristo ou é a Páscoa que vem ao nosso encontro trazida pelo calendário? E como nos encontra ela? Instalados na nossa zona de conforto e precavidos contra qualquer surpresa, ou como pobres que esperam vigilantes a passagem do Senhor para recebermos a Vida abundante que, como filhos de Deus temos a receber em herança?
Sem Páscoa não há futuro.
Para esta sociedade do bem-estar com a psicose da segurança contra todos os riscos, a Páscoa tornou-se uma realidade estranha e insignificante que muitos preferem ignorar para que a vida decorra sem sobressaltos, como está programada, e continuemos todos a apodrecer num imobilismo egoísta e sem horizontes. Como escreveu Fernando Pessoa,
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz:
Ter por vida a sepultura.
“Páscoa” quer dizer “passagem”. Para o povo de Israel, escravo do Faraó, houve Páscoa porque Deus passou no Egito levando vida e liberdade aos que sofriam e semeando morte e destruição entre os egípcios. E porque Deus passou, também o povo de Israel passou o Mar Vermelho, atravessou o deserto e entrou na Terra Prometida.
Para nós cristãos há Páscoa porque o Senhor Jesus Cristo passou deste mundo para o Pai oferecendo-Se na Cruz por nós, por nosso amor, em vez de nós, e ressuscitou para nos dizer que estamos livres dos nossos pecados e podemos passar por onde Ele passou: neste ano de 2015 há Páscoa para nós, se quisermos, e para quantos O quiserem seguir. A passagem que Ele abriu no meio da morte continua aberta para passarmos de uma vida de escravidão, sem esperança e sem amor, para a vida plena que é a reconciliação e a comunhão com Deus e com o próximo cultivada desde já e progressivamente no seio da Igreja.
Sim, precisamos da Igreja para que haja Páscoa. Nela fomos batizados e nela renovamos a graça batismal no sacramento da Reconciliação. Nela celebramos a Eucaristia e caminhamos como irmãos para a casa do Pai onde Cristo nos espera, intercedendo por nós. Se te reconcilias com o Senhor e cultivas a vida cristã como membro vivo da Igreja, o mundo renova-se e é transformado.
Vençamos a inércia e a indiferença
Muitas vezes o Papa Francisco nos interpela para superarmos a indiferença por uma vida sempre em saída de nós mesmos ao encontro dos outros, sobretudo dos mais pobres, física e espiritualmente. Alguns cristãos ficam fechados nos seus grupos e devoções, sem viverem a alegria da missão.
Cristo ressuscitado aparece aos Apóstolos e envia-os a todo o mundo, para levarem a Boa Nova da vida que Ele ganhou para nós. Envia sobre eles o Espírito prometido que os torna evangelizadores com Espírito. Muitos milhões através dos tempos acreditaram na Boa Nova e nós também, através do testemunho dos Apóstolos e da Igreja. Se chegou até nós e a recebemos, devemos transmiti-la. Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra? (Lc 18, 8)
Esta interrogação deve estar sempre presente em nós para nos incentivar à evangelização. A Europa está envelhecida, demográfica e espiritualmente, e nós não podemos ficar de braços cruzados. Por isso a nossa diocese de Beja encontra-se a celebrar um Sínodo e o Papa Francisco convocou um Sínodo dos Bispos sobre a família e anunciou um Ano jubilar da Misericórdia, que vai começar na solenidade da Imaculada Conceição, no 50º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II.
Cristo ressuscitado é a nossa esperança e a nossa alegria. Na Sua Cruz gloriosa encontramos a sabedoria e a força de que precisamos para dar testemunho d’Ele., Impelidos pela Sua caridade, saiamos ao encontro de quem vive na solidão e na tristeza, com a Boa-notícia no coração e nos lábios: Cristo venceu a morte, ama-te e vem ao teu encontro para transformar a tua vida! Acredita n’Ele e seràs salvo!
A paz de Cristo Ressuscitado esteja convosco!
Rezai por nós.
† António Vitalino, Bispo de Beja
† D. João Marcos, Bispo Coadjutor
Mudança e atualização
1. Interpelações da mudança
De 26 a 29 de janeiro, em Albufeira, o clero das dioceses de Évora, Beja e Algarve realizou as oitavas Jornadas de Atualização, promovidas pelo Instituto Superior de Teologia de Évora, subordinadas ao Tema - Que pastores para a Igreja no mundo atual? Há cinquenta anos atrás o concílio Vaticano II, convocado pelo bom Papa João XXIII, agora proclamado santo, refletiu sobre quase todos os aspetos da doutrina e vida da Igreja sob o prisma do seu significado para o mundo, fenómeno que ficou conhecido pela palavra italiana aggiornamento, que podemos traduzir por por-se em dia, atualizar-se.
Para uns isso foi um escândalo e para outros um sinal de primavera, de rejuvenescimento. Como pode Deus e a revelação da sua vontade atualizar-se? Não será antes a humanidade que tem de adaptar-se? Por outro lado, como tornar significante hoje o que foi expresso numa cultura do passado? Afinal, quem tem de adaptar-se?
Estas interrogações mereceriam grandes reflexões. Mas, na brevidade desta nota, focarei apenas um aspeto, referente aos agentes principais que são chamados a viver e testemunhar a revelação de Deus nos tempos atuais. Foi esse o objetivo destas jornadas, sempre a ter em conta em todas as atualizações.
A terra move-se, as gerações e transformações dos ambientes e das culturas sucedem-se, hoje de modo mais veloz, devido ao mundo global em que vivemos e aos meios de que dispomos. Precisamos de alguns pontos de referência para ler e descobrir o sentido de toda esta mudança. Como dizia Santa Teresa, cujo V centenário do nascimento estamos a celebrar: nada te perturbe, nada te espante, tudo passa, Deus não muda, a paciência tudo alcança; quem a Deus tem, nada lhe falta: só Deus basta.
Deus é realmente o ponto de referência, que tem como ponto alto da sua revelação histórica a vida e mensagem de Jesus Cristo. É na sua referência a Jesus Cristo que a Igreja de todos os tempos encontra o sentido da sua natureza e missão. As testemunhas desse ponto de referência só significam alguma coisa nessa relação com Jesus Cristo e com o mundo do seu tempo, em constante mutação. Por isso precisam de um processo de atualização contínua, para serem significantes. Daí o tema destas jornadas: que pastores para o nosso tempo?
Foi num ambiente de convivência fraterna, entre bispos, presbíteros, diáconos e conferencistas de diversos meios, formação e profissões, em palestras, trabalhos de grupo, oração e convívio, que fomos sendo interpelados sobre as nossas relações primordiais. De salientar o contributo de D. Jorge Patron Wong, secretário da Congregação do Clero. Todos ficamos mais conscientes de que a nossa vida e ação tem de ser sempre numa perspetiva de filiação, fraternidade e paternidade, à semelhança de Jesus, que viveu a sua condição de Filho de Deus, irmão nosso e sempre em relação com o Pai, cuja vontade veio para cumprir.
2. Mudanças pessoais e estruturais
As mudanças são de ordem pessoal e estrutural. Quem recebeu a vocação para o serviço ao povo de Deus nunca pode esquecer essa atitude fundamental de relação com aqueles que deve servir: humilde e fraterna, procurando centrá-los naqu’Ele que enviou, pois só Ele é Mestre e Senhor.
Mas isto não se consegue, se o enviado não cultivar em relação a Ele também uma atitude filial contínua e fiel, de escuta e diálogo, como quem procura saber a vontade de quem o envia e as necessidades daqueles a quem é enviado. Além da atitude fraterna e filial, o servidor deve assumir também a missão paterna, ajudando a nascer e a crescer os filhos de Deus até à maturidade das relações fundamentais e caraterísticas do povo de Deus. Isto implica uma conversão contínua dos pastores pela oração, abertura aos dons de Deus, formação, atualização, e, muito especialmente, pela caridade pastoral, como se exprime um documento do concílio.
A partir daqui surge a necessidade de adequar os meios e instrumentos comunitários da missão dos pastores em relação às pessoas, comunidades e povos de cada tempo. A caridade pastoral é criativa e descobre os melhores meios para melhor servir. É na relação fraterna entre os pastores e o povo de Deus que se descobrem esses meios mais adequados, para atingir a finalidade da vida e mensagem de Jesus Cristo, que tem de ser também a da Igreja e dos pastores.
À luz deste princípio muitas rotinas e estruturas pastorais se revelam obsoletas e precisam de ser mudadas. Mas isto não pode fazer cada um por si. É preciso deixar-nos envolver, numa comunhão profunda, que nos faz participar na vida e no bem do todo, que é o Povo de Deus de cada tempo, região e cultura.
Para descobrir as melhores estruturas de comunhão e participação convocámos um Sínodo, que pretende envolver a todos na descoberta da vontade de Deus e das necessidades deste povo no Alentejo.
Direi mesmo que a estrutura sinodal da Igreja é a mais adequada e perfeita de todas, em ordem a atingir aquele ideal de vida cristã, relatado no livro dos Atos dos Apóstolos: todos os que abraçaram a fé eram assíduos e perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, no partir do pão e nas orações (2, 42)..., de modo que entre eles ninguém passava necessidade (4, 34).
Nesta súmula temos um programa de vida pessoal e comunitário, que, posto em prática, dará hoje novo vigor à pastoral da Igreja.
† António Vitalino, Bispo de Beja
02 de Fevereiro de 2015
Vidas em contra-corrente
1. Fora de moda por opção
A 30 de novembro de 2014 começámos a celebrar um ano dedicado pelo Papa à vida consagrada, ou seja, àquelas opções de vida que estão em contra-corrente e fora de moda por opção, que leva pessoas a constituirem comunidades cujo objetivo não é constituir uma família de sangue ou para satisfazer o corpo ou a vontade própria, mas para louvar a Deus e servir os outros, sobretudo os mais pobres. São as comunidades de vida consagrada, de frades e freiras como se diz popularmente, em que os seus membros renunciam aos estilos de vida usuais e prometem seguir e imitar Jesus Cristo através dos votos de obediência, pobreza e castidade.
Em Portugal estamos a celebrar uma semana especialmente dedicada à vida consagrada, que termina no dia 2 de fevereiro, festa da apresentação de Jesus no templo e que na diocese vai ter um ponto alto no dia 31 de janeiro, com um encontro diocesano no Centro Pastoral de Beja. Neste encontro queremos fazer memória agradecida do passado na diocese e na Igreja, abraçar o futuro com esperança e viver o presente com paixão, como se expressam os bispos portugueses na nota pastoral que publicaram para este ano da vida consagrada.
Presentemente temos na diocese cinco comunidades de vida consagrada masculina: em Beja, os Carmelitas e a Fraternidade dos Irmãozinhos de S. Francisco de Assis; em Santiago do Cacém, a Congregação da Missão ou Vicentinos; em Almodôvar, a Congregação do Verbo Divino ou Verbitas; em S. Martinho das Amoreiras e Colos, a Milícia de Cristo ou Milicianos. Está também entre nós, na Amareleja e Barrancos, um missionário xaveriano, o Padre Carlos, da Bolívia.
Comunidades femininas temos em Beja o Carmelo, as Oblatas do Divino Coração, fundadas por D. José do Patrocínio Dias, que têm também uma comunidade em Odemira, as Cooperadoras da Família na Casa Episcopal, as Carmelitas Missionárias, as Franciscanas Missionárias de Maria na Fundação Manuel Gerardo, que têm também uma comunidade em Vila Nova de Santo André e as Irmãs da Divina Providência e Sagrada Família, no Seminário, que têm também uma comunidade em Vila Alva.
Em Ferreira do Alentejo está uma comunidade das Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, que também já tiveram uma comunidade em Moura. Em Sabóia está uma comunidade das Missionárias do Espírito Santo. Em Safara estão as Servas da Divina Providência de Maria Auxiliadora e do Próximo. Na Amareleja estão as Servas de Nossa Senhora de Fátima.
Desde o verão temos em Colos os Servos de Maria do Divino Coração, uma nova comunidade vinda do Brasil, que residem na casa onde antes estavam as Irmãs do Bom Pastor, que deixaram a diocese no verão passado. Também as Irmãs Doroteias, que estavam em S. João de Negrilhos, deixaram a diocese no mês de dezembro. Além destas comunidades há algumas consagradas em vários pontos da diocese, a título pessoal, sem inserção comunitária.
2. Significado desta diversidade de vida consagrada
Para quem considera este fenómeno de fora, pode perguntar-se sobre o porquê desta diversidade e opinar que a sua missão e testemunho seria mais forte e significativo, se constituissem um só grupo empenhado no apostolado diocesano. É a tentação da uniformidade, que não aprecia a beleza da diversidade de pessoas e dons na sociedade e ainda menos na Igreja. Embora ao longo dos séculos algumas formas de vida consagrada e institutos tenham desaparecido, perdido o seu significado histórico e geográfico, no entanto as comunidades de vida consagrada são significativas por aquilo que são e pela consagração radical da vida dos seus membros na Igreja, e não tanto por aquilo que fazem.
Quem vive a sua configuração com Cristo, acontecida no batismo, dessa forma radical, é sempre significativo e altamente útil na Igreja, pois testemunha a dimensão do sentido último da vida humana, cuja realização plena acontece apenas na eternidade. É aquilo a que se costuma chamar a dimensão escatológica da vida cristã. Estas pessoas têm um sentido apurado da dignidade da pessoa humana e são extremamente úteis numa sociedade utilitarista e funcional, em que as pessoas são apenas números, máquinas de trabalho e descartáveis.
Uma Igreja e uma diocese sem estes diversos estilos de vida consagrada, chamados carismas ou dons da graça de Deus, é pobre e sem futuro. Por isso a nossa diocese está muito grata aos consagrados e consagradas presentes entre nós, quer tornar visível esta gratidão e implora de Deus as vocações para estas comunidades e muitas outras espalhadas pelo mundo.
Mas as vocações não surgirão, se não as implorarmos e se os próprios consagrados não viverem o seu presente com paixão e alegria. Assim poderemos abraçar o futuro com esperança, confiantes que, mesmo atravessando um deserto demográfico na Europa, o Espírito de Deus continua a fazer surgir até das pedras os filhos e filhas de Deus, que se consagram radicalmente a Deus no serviço material e espiritual aos irmãos mais necessitados.
† António Vitalino, Bispo de Beja
26JAN2015
Órfãos de pai, mas não de mãe
1. Filhos abandonados
Frequentemente encontramos pessoas na rua e em instituições que não conhecem os seus progenitores ou não querem falar deles. Os motivos deste corte efetivo e afetivo são vários. Mas os efeitos no desenvolvimento destas pessoas são perniciosos para os próprios e para a sociedade. Sempre me tocou e questionou uma afirmação atribuída a Deus no livro do profeta Isaías: mesmo que uma mãe esqueça o filho que amamenta, Eu não vos esquecerei. Esta certeza do amor de Deus, mais forte e fiel que o de uma mãe, consola-me, mas gostaria que ela se tornasse a certeza de muita gente e sobretudo das pessoas esquecidas por suas mães. Não é fácil transmitir esta certeza da fé, sobretudo a quem não fez a experiência do amor materno.
Apesar da consolação da fé, não podemos deixar de nos comover e chorar ao ver crianças a sofrer por causa do abandono e da insensibilidade de muitos adultos, que abusam delas, as escravizam e até usam como armadilhas para a guerra e como bombas suicidas. O Papa Francisco, no encontro com os jovens nas Filipinas, ficou comovido com a pergunta de uma criança sobre o sofrimento das crianças e disse que a nossa melhor resposta é chorar com quem sofre. Disse mesmo que precisamos de aprender a chorar, sinal de que temos um coração sensível e compassivo com o sofrimento do próximo.
Alguns pedagogos falam de uma sociedade sem pai, mas para muitos não há pai nem mãe. São órfãos dos dois progenitores. Como superar este abandono? Em vez de procurar respostas demagógicas e de incriminar os pais insensíveis, que não desempenham a sua principal missão humanitária, será mais importante tornarmo-nos todos pais e mães ternos e acolhedores, disponibilizando-nos como pais adoptivos logo nos primeiros meses das crianças abandonadas, em vez de as institucionalizar.
2. Migrantes e refugiados entre os mais pobres
No dia 18 de janeiro, sempre no domingo a seguir ao Batismo do Senhor, a Igreja celebrou o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Em Portugal a Obra Católica das Migrações em conjunto com a Caritas Portuguesa, a Agência Ecclesia e este ano também com o Departamento Nacional da Juventude realizou umas jornadas sociopastorais sobre a mobilidade. Na Casa de Santa Maria Rafaela, em Palmela, juntou uma centena de pessoas vindas das várias dioceses e também alguns agentes pastorais a trabalhar entre os migrantes, a fim de refletir sobre este setor e ajudar a sociedade a conviver com estes novos concidadãos, considerando-os um enriquecimento em todas as dimensões da vida, e não um problema desestabilizador.
Na sua mensagem para este dia o Papa Francisco diz que os migrantes e refugiados se contam entre os mais pobres da sociedade, apesar de muitos terem grande sucesso nos países de destino. Embora a emigração seja um direito, no entanto a grande maioria dos migrantes deixa a sua terra, amigos e familiares por falta de condições de vida digna no país de origem, esperando ser bem sucedidos na viagem de transição e no país de destino.
Por isso o Papa apela para sermos uma Igreja sem fronteiras e mãe de todos, com tudo o que isto implica nas igrejas de origem e de destino dos migrantes, atenção uns aos outros, uma cultura de acolhimento, de solidariedade e entre-ajuda, sobretudo nos primeiros tempos, de modo que ninguém se sinta como intruso, indesejável ou descartável, agravando assim o seu sofrimento.
À globalização do fenómeno migratório será desejável corresponder com a globalização da caridade e da solidariedade, ajudando os países menos desenvolvidos a fixar os seus cidadãos, oferecendo-lhes condições de vida e de trabalho digno, para sustentar e educar as suas famílias, de modo a evitar a necessidade de emigrar.
Neste apelo do Papa manifesta-se a natureza de uma Igreja sem fronteiras e mãe de todos os povos, preocupada com o bem de todos, sem aceção de pessoas. Oxalá este modo de ser Igreja se torne cada vez mais uma realidade também entre nós.
† António Vitalino, Bispo de Beja
21JAN2015
Quebras da confiança
1. Ruturas ou acidentes de caminho?
Na última nota abordei a necessidade de restabelecer a confiança em todas as relações, para que a paz e o progresso sejam possíveis. Mas logo acontecem os atos de terrorismo em França e continuam em muitos outros continentes, mas sem o mesmo frenesim mediático. Tratar-se-á de ruturas que impossibilitam o restabelecimento da confiança ou simplesmente de acidentes de percurso, que vem fortalecer os construtores da paz?
No evangelho Jesus proclama felizes os construtores da paz, porque alcançarão o Reino de Deus. Apesar disso os seus seguidores têm sentido muitas dificuldades em seguir esse caminho e muitos foram e são vítimas de violência. Penso nos mártires ao longo dos séculos, mas também nos de hoje, em muitas partes do mundo.
No entanto, são estas vítimas que vão mudando as mentalidades e atitudes, fazendo ver e crer que nunca haverá paz imposta pelo medo das armas e da violência, mas somente pelo dom da vida, o perdão e o amor, mesmo aos inimigos, como proclama Jesus. Os milhões de pessoas que sairam à rua para dizer não à violência e sim à liberdade de expressão e de religião dão força a estes valores fundamentais das sociedades democráticas.
Mas a liberdade de pensar, de expressão e de ação não são valores absolutos, isolados de tantos outros também importantes, como o respeito pela dignidade das pessoas, com as suas opiniões e crenças, o seu direito a ser tratadas com igualdade e como irmãos. Em nenhum caso podemos fazer justiça pelas próprias mãos ou tirar a vida a quem nos ofende.
No entanto, as autoridades devem estar atentas e não permitir que os seus cidadãos, sejam maioria ou minoria, sejam maltratados ou difamados. O código moral dos cristãos é claro sobre como proceder. Mas quem não tem esses princípios deve respeitar, pelo menos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por isso nem todos somos Charlies nem terroristas, embora sejamos contra todos os atos de violência.
No meio das manifestações de solidariedade para com todas as vítimas, temos de fazer o nosso exame de consciência, pessoal e coletivo, e bater com a mão no peito, pois todos temos culpas nas situações de violência que vão acontecendo no nosso planeta.
A exploração de pessoas e povos, as desigualdades crescentes, a corrupção e o enriquecimento ilícito, as injustiças, o desemprego, o esbanjamento, o desrespeito pelas convicções étnicas e religiosas das pessoas, tudo isso cria ambientes de racismo e xenofobia, que fomenta a desconfiança e a violência. E nisto são tão culpados os fundamentalistas religiosos como os ideólogos ateus militantes, os indiferentes perante o mal do próximo e os que apenas falam mal dos outros e nada fazem para construir a paz.
2. O dom da fraternidade verdadeira
Com a celebração do Batismo de Jesus por João Batista terminou a quadra festiva de Natal e Jesus deu início à sua vida pública, anunciando o Reino de Deus. Jesus colocou-se na fila dos pecadores para receber o batismo de João e santificar as águas, para que por elas e pelo Espírito Santo pudéssemos renascer, ou seja, nascer de novo, para vivermos nas pegadas de Jesus Cristo.
Este nascimento é um dom da fé através da mediação da Igreja. No Batismo pedimos à Igreja a vida eterna, ou seja, uma vida onde já não é o homem mortal do pecado que reina, mas Jesus Cristo com o seu Espírito. Este renascimento é um dom, mas é preciso deixar crescer a criança nova em nós, não apenas em estatura, mas também em sabedoria e graça, ao modo de Jesus, que passou no mundo fazendo o bem, perdoando, ensinando e entregando a vida por todos.
No Batismo nasce o homem para a fraternidade universal, mas precisa de alimento para percorrer o caminho até à maturidade. O essencial desse alimento também é dom através da comunidade dos discípulos de Jesus, pois falta-nos a capacidade para nos auto-abastecermos.
Na génese do homem novo há sempre essa colaboração entre o humano e o divino. As misturas feitas só a partir de nós mesmos tornam-se remédios sem simbiose dos elementos. Não têm energia para nos fazer crescer até à maturidade do homem segundo Jesus Cristo. Um simples voluntarismo ou moralismo não fomentam o homem fraterno ao modo de Jesus, livre e alegre na entrega de si mesmo para libertação do egoísmo, que faz secar a seiva da vida e da relação fraterna entre todos.
Estes pensamentos sobre o batismo como raiz da vida nova de relações fraternas, baseadas no amor, que nos liberta do medo, da opressão e da tristeza surgem ao ver tantos milhões a marchar contra a violência, o terrorismo e pela liberdade de expressão e de religião. Isso é importante, mas creio que ficamos a meio caminho, se não renascermos para o ideal de homem que ama, perdoa e reza pelo seu inimigo, que se põe ao serviço, sobretudo dos mais frágeis, como o fez Jesus Cristo.
Neste mundo de senhores, de desiguais, de acepção de pessoas, de injustiças, de corrupção, de indiferença perante o sofrimento de muitos milhões, de opressão e escravidão, será difícil eliminar a violência. Por isso é bom acordar e começar a caminhar. Mas não tenhamos ilusões. Temos um longo caminho a percorrer. Precisamos de alimentar a esperança, acolhendo com docilidade e gratidão os dons que a fé nos transmite.
† António Vitalino, Bispo de Beja
12JAN2015
Recuperar a confiança
1. Regenerar as relações fundamentais
A época de Natal e o início de ano civil, mesmo para quem não professa nenhuma confissão cristã, desperta nas pessoas e grupos da nossa sociedade uma grande nostalgia pelo agregado familiar e abre feridas profundas nas pessoas quando faltam manifestações de proximidade e afeto entre os seus membros.
Nas diversas festas de Natal em que participei, em lares e instituições, vi muitas lágrimas nas faces rugosas de vários idosos, ou porque perderam recentemente alguém da família ou porque não tiveram nenhuma manifestação de carinho por parte dos seus familiares.
Isto fez-me refletir uma vez mais sobre a estrutura relacional do ser humano, apesar da afirmação crescente do individualismo e relativismo reinante no mundo atual. Há em todos os seres, e muito especialmente nos humanos, uma necessidade de múltiplas relações, que exigem muita atenção e cuidado para não serem defraudadas e levarem a uma desilusão profunda e à solidão insuportável. Isto significa que precisamos de curar muitas feridas e recuperar a confiança uns nos outros, nas instituições sociais e na própria família.
Como curar estas feridas, para estabelecer um clima de confiança à nossa volta? Sem pretensão de apresentar nesta breve nota todos os remédios, vou apontar alguns, que nos podem ajudar a viver um ano com mais alegria e esperança, apesar das imensas dificuldades com que nos deparamos na construção do nosso bem estar.
2. Recuperar a dignidade própria e dos outros
Em primeiro lugar, temos de fazer o nosso exame de consciência, pois muitas das causas da desconfiança estão em nós mesmos e os remédios também ao nosso alcance. O Papa Francisco fez uma parte desse exame no discurso aos membros da Cúria do Vaticano, a 22 de dezembro, apontando um elenco de 15 pecados ou deficiências que nos impedem de exercer com alegria e eficiência a missão da Igreja, e não apenas os colaboradores do Papa.
Não os vou repetir aqui um a um, mas resumi-los nas palavras amor e paixão pelo bem das pessoas, à luz da nossa fé em Jesus Cristo, que se fez um de nós e se entregou para a salvação de todos. Se temos fé em Deus, não podemos deixar de amar os nossos irmãos. De contrário, estamos a mentir, a dizer uma coisa e a fazer outra, temos dupla personalidade ou somos esquizofrénicos ou então sofremos de alzheimer, perdemos a memória do que somos, da nossa dignidade.
Em segundo lugar, temos de reconhecer que sofremos de algumas deficiências, não somos perfeitos, nem sequer no cumprimento dos dez mandamentos, um código fundamental para a convivência hum ana pacífica. Mas também não desesperamos, porque nos sabemos amados por Deus apesar do nosso pecado e temos a possibilidade de implorar o perdão e de o conceder a quem nos ofendeu, como rezamos no Pai Nosso, a oração que Jesus ensinou aos apóstolos.
Em terceiro lugar, embora conscientes da liberdade do ser humano, que o pode fazer enveredar por caminhos de desencontro e também conhececedores dos meandros da nossa justiça, que tem dificuldade em desvendar o mistério do mal e da corrupção, não deixamos de acreditar nos homens de boa vontade e de criar laços de confiança, para que o trigo se fortaleça em relação ao joio, o bem prevaleça sobre o mal e a nossa sociedade se torne mais humana, justa, fraterna, livre e solidária.
Felicito as pessoas que fazem voluntariado nas nossas comunidades e instituições, dando uma parte do seu tempo e das suas vidas a visitar, apoiar e consolar aqueles que vivem sós e esquecidos da sociedade, isolados nas casas, nos hospitais, nos lares, nas prisões, etc. São os reis magos dos nossos tempos, guiados pela estrela do amor de Deus, que os leva até às grutas daqueles para quem não há lugar nas nossas estalagens.
Neste sentido desejo um bom e abençoado ano a todos os diocesanos e pedimos a todos para que se deem as mãos, fazendo cada um o que está ao seu alcance para o bem daqueles com quem vivemos, sobretudo dos mais débeis.
Assim construimos a nova sociedade da confiança e também a nossa diocese em sínodo.
† António Vitalino, Bispo de Beja,
05JAN2015
Caminhos de renovação
Tradição e renovação
No dia 25 de Novembro do corrente ano a Unesco declarou o Cante Alentejano património imaterial da humanidade. Parabéns aos alentejanos por terem sabido conservar viva a sua cultura musical, expressão profunda e bela do seu modo de comunicar e conviver em sociedade. A influência do poder comercial e mediático dos modernos cantores de outros países não conseguiu abafar a alma alentejana. Mas espero que a crise demográfica também não o consiga, relegando o cante para os ambientes museológicos e retirando-o das igrejas, das festas populares, da rua e das tabernas.
A tradição cultural, o clima e a natureza fazem parte da identidade de um povo. No panorama nacional o Alentejo ainda é das poucas zonas onde a tradição se mantem. Mas sabemos que sem evolução e renovação não será possível ter futuro, no cante e em todas as expressões da vida de um povo. Por isso será necessário estudar esta expressão cultural, torná-la presente nas escolas elementares e superiores, para que não degenere.
Este reconhecimento trouxe honra aos alentejanos, mas também compromissos em ordem à preservação deste património. Quem se encarrega disso, contando com a colaboração de todos? Autarquias, escolas, igrejas, festivais, clubes? Aqui está uma área em que todos somos corresponsáveis e devemos colaborar. E não é favor nenhum, pois o cante encanta, junta, une e fraterniza as pessoas e os ambientes. Da nossa parte tudo faremos para que o cante na sua versão religiosa continue a ecoar nas nossas igrejas e procissões.
Mas muito mais coisas, modos de ser, valores e ideais precisamos de transmitir às novas gerações e adequá-las aos novos tempos. O Papa Francisco, nos discursos feitos recentemente no Conselho da Europa e no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, desafiava estas instituições importantes na construção de uma Europa de paz e de progresso a não ficarem apenas pela dimensão económica e financeira da comunidade europeia, mas a colocarem no centro das suas decisões a dignidade da pessoa humana nas suas relações multipolares e transversais.
A verdade, a solidariedade, a subsidariedade, o bem comum, o nós integral das pessoas em sociedade são património da doutrina social da Igreja sobre o qual os fundadores da Europa quiseram construir uma Europa que resolve os seus conflitos e divergências pelo encontro das pessoas e dos povos através do diálogo e não pela violência das armas, pelo consenso e entreajuda.
Este rico património da Europa, criado ao longo de séculos, cultivado pelos filósofos, escritores, artistas, igreja, escolas e universidades, expresso de muitos modos, tem raízes profundas que é preciso conhecer e amar, para que daí surjam novos dinamismos de desenvolvimento global para toda a humanidade, sem marginalizar ninguém, pessoa, grupo ou povo, nem reduzindo as pessoas a números ou objetos descartáveis. A visão bíblica e cristã do mundo contem potencialidades benéficas para a construção duma nova civilização de paz e de amor, como se exprimia o bem-aventurado Papa Paulo VI.
Olhando para os obreiros de um mundo novo
No alvoroço de notícias, comentários e opiniões acerca do estado da nossa sociedade podemos ser levados a esquecer as pessoas concretas, que vivem ao nosso lado e os acontecimentos do dia a dia, que fazem parte do nosso quotidiano, que são os verdadeiros obreiros do mundo novo, mais justo, solidário e humano. Neste panorama os meios de comunicação dão realce a algumas personalidades e a determinados acontecimentos, como as palavras e gestos do Papa Francisco, alguns acontecimentos de violência causada por pessoas, grupos ou por fenómenos da natureza.
Da minha última semana quero hoje realçar algumas pessoas e instituições, que me lembraram quanto nós e a sociedade lhes devemos pelo seu testemunho fiel de vidas dedicadas ao serviço de Deus e dos outros. Em primeiro lugar, a celebração de 90 anos de vida de dois sacerdotes da nossa diocese, os padres José Carvalho e Olavo, e dos 60 anos de sacerdócio deste último e também dos 60 anos da fundação do Carmelo de Beja.
Todos estes anos de vida e de consagração a Deus e à sociedade, através de muitas dificuldades e carências, mas sempre com a firmeza da fé, das convicções bem arraigadas e da sua dedicação generosa despertou em mim e em muitos outros grande gratidão e admiração. No meio da instabilidade dos tempos que correm, estas pessoas e instituições são um património precioso, que nos ajudou a chegar até aqui e que precisa de ser continuado, mas com novos dinamismos, para não retrocedermos no caminho da nossa humanização e da construção do povo de Deus.
No ano da vida consagrada queremos aprender a ser gratos por tantos dons que Deus nos concedeu nas pessoas e comunidades dos mais diversos institutos de vidas totalmente dedicadas a Deus e ao serviço dos mais débeis da nossa sociedade. Sem gratidão não seremos beneficiados com novos dons de vidas consagradas.
No fim do verão deixou-nos a comunidade das Irmãs do Bom Pastor, que estavam em Colos há vários anos. Na próxima semana vai deixar a nossa diocese a comunidade das Irmãs Doroteias, que estavam em Montes Velhos, S. João de Negrilhos e que durante muitos anos foram preciosa ajuda ao trabalho pastoral, social e educativo lançado Padre Olavo.
Felizmente recebemos também este verão uma comunidade brasileira dos Servos de Maria do Coração de Jesus, que agora residem em Colos e na solenidade da Imaculada Conceição, dia 8 de dezembro, ordenamos 3 diáconos para o serviço na diocese.
Sem cair numa avaliação pessimista a partir da quantidade de comunidades e pessoas consagradas, temos de reconhecer que as palavras evangélicas de Jesus mantêm a sua atualidade: A seara é grande e os operários são poucos, pedi ao Senhor da Messe que envie operários para a sua messe (Mt 9, 37-38).Este pedido faço a todos os diocesanos. Peçamos ao Senhor mensageiros para a messe alentejana, mas também não esqueçamos de ser gratos por todos aqueles que desgastaram as suas vidas ao serviço deste povo.
† António Vitalino, Bispo de Beja
09DEZ2014
Caminhar sem destino?
Becos sem saída
Na semana passada assistimos, a nível do país e internacionalmente, a alguns acontecimentos inesperados e que nos devem fazer pensar, se todos terão alguma saída ou serão becos sem sentido e sem saída. Muitos jogam na lotaria, mas nem todos têm sorte. Apenas alguns. Outros sem jogarem, conseguem o mesmo objetivo, mas prejudicando outros, que se recusam enveredar pelos caminhos da corrupção. Admiro as pessoas que, escolhidas democraticamente para assumir responsabilidades públicas, não se deixam corromper, resistindo à tentação de enriquecer rapidamente. Nem todos são iguais, dizia um político esta semana. Ainda bem, digo eu. Mas será que o nosso povo vê a diferença e continua a acreditar na boa fé das pessoas que estão à frente dos destinos do país e do mundo?
Um caminho de esperança percorreu na semana passada o nosso Papa Francisco, indo à Turquia, país de maioria islâmica, mas onde os cristãos são tolerados e sobretudo indo a Constantinopola, hoje Istambul, outrora capital oriental do império romano, onde reside o Patriarca ecuménico da Igreja Ortodoxa, agora Bartolomeu I, a qual no século XI se separou do Papa de Roma. Com o Patriarca Bartolomeu I o Papa Francisco celebrou a festa do apóstolo Santo André, irmão de S. Pedro, o qual foi o primeiro a seguir Jesus, apontado por João Batista como o Messias esperado.
Foram muitos os sinais e as palavras do Papa apelando à reconciliação de todos os cristãos, que acreditam em Jesus Cristo e de todos os que acreditam em Deus, como é o caso dos islamitas. Num dos seus discursos o Papa disse que ninguém pode invocar a Deus para justificar atos de violência e muito menos a Jesus Cristo, que não resistiu com meios ou atitudes agressivas à violência que os malfeitores usaram para com Ele e até pediu perdão para quem O crucificou. Infelizmente, muitos ainda não ouviram ou não seguem estas palavras e este testemunho. Diariamente muitos são mortos, violentados, expatriados, expropriados dos seus bens por causa da sua fé, como está a acontecer no autoproclamado estado islâmico e em muitas outras partes do mundo.
Apesar de tudo isto os cristãos não desistem de proclamar e testemunhar a sua fé. No domingo, dia 30 de novembro e festa de Santo André, demos início ao ano da Igreja com o tempo do Advento, que significa vinda e chegada. Vinda d’Aquele que há-de vir para julgar os vivos e os mortos segundo a justiça de Deus e chegada d’Aquele que já veio na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus, que assumiu a nossa condição humana, com todas as suas fraquezas e debilidades, nascendo em Belém e dando a vida por nós na Cruz. Os cristãos são chamados a caminhar na esperança, sofrendo e penando como todos os outros, sobretudo os oprimidos e marginalizados, mas na confiança de que o seu caminho tem sentido e por isso não desistem de continuar a sua peregrinação até à Jerusalém celeste, como se expressa o último livro da Bíblia, o Apocalipse.
Chamados a ser samaritanos no caminho
No dia 8 de Dezembro, às 16,00 horas, em Beja, vão ser ordenados três diáconos (Amadeu Lino, Godfrey Okeke e Luís Marques), três jovens vindos de longe e que há vários anos estão a fazer o seu discernimento vocacional na nossa diocese. Vão receber o primeiro grau do sacramento da ordem, o diaconado, instituído pelos Apóstolos em Jerusalém, para atender os mais frágeis da comunidade, os órfãos, as viúvas, os doentes.
Por este sacramento eles são escolhidos e capacitados para esse serviço, mas também toda a Igreja e a diocese é chamada a ter presente este caminho seguido por Jesus e os Apóstolos. Não basta anunciar a todos a boa nova de Jesus, morto e ressuscitado, e celebrar em comunidade a nossa fé. É preciso estar atentos aos mais débeis, em primeiro lugar nas nossas comunidades, de modo que ninguém seja esquecido ou passe necessidade. Temos de ir até às periferias geográficas e existenciais, como se exprime o Papa Francisco, e pelos caminhos proceder como o bom samaritano, que socorre a pessoa ferida na berma do caminho, apesar de pertencer a uma tribo historicamente inimiga.
Vivemos numa sociedade democrática e com instituições e serviços para socorrer os cidadãos nas suas fragilidades. Mas isto não dispensa a nossa atenção às pessoas, cujas necessidades são de vária ordem, e nem sempre as instituições dão resposta. Respeitando a autonomia das respostas civis, sociais e culturais e também a liberdade das pessoas, temos de estar atentos a quem vive no nosso meio ou se cruza nos nossos caminhos, indo ao seu encontro, saudando-os e escutando-os, mesmo quando não entendemos a sua linguagem, para sermos outros bons samaritanos e ajudarmos as pessoas a caminhar, sempre na esperança de alcançar a meta, a realização plena das suas vidas.
Para os cristãos já começou a realização dessa esperança no Natal de Jesus, que celebraremos daqui a quatro semanas. Neste tempo do Advento e no Natal somos desafiados a caminhar, procurando fazer das nossas vidas um encontro com Deus, com os outros e com a natureza, num diálogo contínuo de amor, construindo assim uma história de amizade, até que Deus seja tudo em todos.
† António Vitalino,
Bispo de Beja - DEZ2014
Omissões e vocações
1. A culpa morreu solteira
Começo a minha nota desta semana por um dito frequente, mas pela negativa: a culpa não pode morrer solteira. Mas trata-se apenas da culpa do que fizemos mal ou também do que deveríamos fazer e não fizemos? Na verdade, ouvi esta semana alguém afirmar, diante de muitos notáveis da política, da economia, das empresas e da sociedade, de que somos também responsáveis pelo que não fizemos. Na confissão de culpas dos cristãos sempre se pediu perdão pelos pecados por pensamentos, palavras, obras e omissões. Por isso para quem assim se confessa pecador, nada de novo na afirmação feita perante notáveis. Mas na realidade isso raramente se põe em prática.
Sucedem-se os governos, mudam-se os responsáveis pela gestão dos serviços e empresas públicas, reconhecem-se erros cometidos ou falta de zelo, mas raramente alguém é chamado à responsabilidade. Por isso a culpa morre solteira e todos pagam por isso. Melhor dito, só não paga quem adiantou a sua recompensa imerecida. Assim não admira que muitos lutam pelo poder, pois, uma vez alcançado, já não precisam de se esforçar na luta pela realização do bem comum. Esta mentalidade não é de agora. Já na minha juventude havia muitas cunhas para o funcionalismo público devido à estabilidade e segurança do emprego. Num regime democrático, onde os governos e muitos serviços são sujeitos a sufrágio popular e concursos públicos, procuram-se arranjos rápidos e empregos para os amigos, sem critérios racionais e justos. Assim se vai criando uma sociedade arbitrária e do arranje-se quem puder.
Como inverter o caminho desta sociedade fundada no poder, no arranjinho, na corrupção? Temos de criar mecanismos baseados na verdade, na justiça, no amor ao bem comum. Os cristãos têm um imperativo de consciência que os leva a confessar as culpas e procurar emendar-se e reparar o mal feito. Este mês de novembro começou com a celebração de todos os santos, através dos quais ouvimos o apelo: sede santos porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo. E nele ouvimos a proclamação das bem-aventuranças: felizes os pobres, os que procuram a justiça e a paz, os que sofrem por amor do Reino dos Céus, porque será grande a sua recompensa. Faltam-nos testemunhas de santidade, para mudar o cenário da irresponsabilidade e da corrupção.
2. Mensageiros do Evangelho da alegria
É preciso criar uma mentalidade fundada na verdade, no amor ao próximo, na justiça, na responsabilidade pelo bem comum, mesmo que isso não traga vantagens pessoais, mas antes sofrimento e incompreensões. Se lermos a Bíblia e olharmos bem para o testemunho de vida de Jesus Cristo e dos Apóstolos, descobriremos vidas pautadas por valores e critérios do amor e da gratuidade, hoje muito esquecidos.
Quem os lembrará e tornará presentes pelo seu próprio estilo de vida? Os cristãos definem-se pelo seguimento e imitação de Cristo, até ao ponto de poderem exclamar com S. Paulo: Por Cristo, renunciei a todas as coisas e considerei tudo como lixo, para ganhar Cristo (Fil 3, 7-8).
Neste tempo do consumo egoísta, mais necessário se torna quem dê testemunho destes valores evangélicos. Mas só quem se deixa fascinar e apaixonar por Cristo, a pérola preciosa escondida aos olhos de muitos, é capaz de optar por uma vida consentânea com a de Cristo e viver com alegria a radicalidade do Evangelho das bem-aventuranças.
A semana de 9 a 16 de novembro é dedicada pela Igreja aos seminários, onde se formam os servidores da alegria do Evangelho, como diz o lema deste ano. Um discípulo de Cristo e muito menos um missionário do Evangelho não pode ser um triste e desiludido.
Por isso os seminários não podem educar pessoas sem ânimo, passivas e acomodadas. Os formadores nos seminários, apesar da escassez de seminaristas, não podem ser como mães-galinhas, protecionistas, sem exigências. O amor a Cristo e à humanidade tem de ser posto à prova, como o ouro no crisol. Jesus envia os seus apóstolos como ovelhas para o meio de lobos. Eles voltam alegres da missão e Jesus adverte-os para não se alegrarem pelos êxitos obtidos, mas pela certeza de que os seus nomes estão inscritos no Reino dos Céus. O cansaço da missão é compensado e superado pela alegria que anima o servidor do evangelho.
Muitas vezes, temos de nos recolher no silêncio da oração, confiantes no apelo do Mestre: Vinde a mim todos vós que andais cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei... porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve (Mt 11, 28-30). Só quem vive a paixão por Cristo e pela humanidade, só quem sabe equilibrar o trabalho apostólico e a oração, experimenta a alegria de ser constituído servidor do Evangelho.
Olhando para o testemunho do Papa Francisco e de muitos missionários podemos sentir como é belo e necessário ao mundo este caminho iniciado no batismo, descoberto no chamamento para seguir Jesus e treinado ao longo dos anos de formação nos seminários. Por isso, nesta semana e de vez em quando ao longo do ano lembremos com gratidão os nossos seminaristas e os seus formadores, para que não falte ao mundo quem opta por ser testemunha e servidor da alegria do Evangelho.
Alegremo-nos também porque no dia 23 de novembro, nos Jerónimos, vai ser ordenado bispo aquele que me vem ajudar na missão e será o meu sucessor à frente desta diocese, D. João Marcos. Quem não for aos Jerónimos poderá no dia 30, às 16,00 horas, na igreja de Santa Maria, em Beja, participar na sua apresentação aos diocesanos.
Alegremo-nos ainda pelos três diáconos que vão ser ordenados no dia 8 de dezembro, na mesma igreja e à mesma hora. E rezemos pelos 3 seminaristas de Beja a estudar teologia em Évora e pelos dois candidatos ao seminário, a fazer o ano propedêutico em Faro. Oxalá todos venham a ser servidores do Evangelho da alegria.
† António Vitalino, Bispo de Beja
09/NOV2014
Mortos ou vivos?
1. O culto dos mortos
Estamos a chegar ao fim do mês de outubro, na tradição da Igreja conhecido como o mês do rosário, para entrarmos no mês de novembro, este conhecido como o mês dos finados. Embora o dia 1 seja dedicado a todos os santos, dia santo com obrigação de participar na missa, mas não feriado, um dos que a crise nos tirou, as pessoas sempre o aproveitaram para fazer as suas romagens aos cemitérios, onde jazem os seus entes queridos já falecidos, pois o dia a eles dedicado, o dia 2 de novembro, não é feriado nem dia santo. Este ano coincidem com o fim de semana e talvez ambos sejam aproveitados para a romagem aos cemitérios.
Na tradição cristã houve sempre um grande respeito pelos falecidos, pois o seu corpo inanimado é único e é a referência visível da pessoa que partiu. Embora hoje a Igreja católica aceite a cremação e até preveja uma bênção para esse ato, no entanto desde os princípios do cristianismo até aos nossos dias houve sempre um culto especial dos mortos. Recordemos as catacumbas no tempo do império romano e das perseguições aos cristãos e os sepultamentos nas igrejas, nos claustros dos conventos e nos adros das igrejas. Entre nós ficou famosa a revolução de Maria da Fonte, que se opunha ao sepultamento nos cemitérios, fora dos espaços de culto.
Estas mudanças vão contribuindo para uma profunda alteração da nossa relação com o sofrimento e a morte. Os idosos entregam-se aos lares, os doentes e moribundos aos hospitais e lares de cuidados continuados e os mortos são entregues às agências funerárias, aos tanatórios ou cemitérios em lugares retirados do normal convívio da sociedade. A pouco e pouco vamos perdendo a experiência da morte e do respeito e culto pelos mortos, o que vai provocando uma mudança cultural, como se a morte biológica não fizesse parte do sentido da nossa existência. Diz-se que os chineses não morrem. Qualquer dia dir-se-á o mesmo de nós, se não invertermos os nossos hábitos na relação com a morte biológica.
Nos tempos em que os falecidos eram velados nas casas onde viveram, a maior parte das vezes na grande família, as crianças começavam cedo a conviver com a fragilidade da vida, a doença e a dor, aprendendo a integrar a morte nas suas possibilidades de vida e de futuro.
Felizmente hoje temos os cuidados paliativos e não se justifica o suicídio assistido, que é outra forma de não aceitar a fragilidade do ser humano e não acreditar no ato de entrega ao criador ou naquilo que nos diz a fé cristã, de que a vida não acaba, apenas se transforma, ou, como diz S. Paulo, enquanto o ser visível vai acabando, vai-se formando o homem interior e invisível, faz-se a passagem do homem temporal para o eterno. Por isso a profissão de fé cristã termina com a afirmação da crença na ressurreição dos mortos, como Cristo, na vida eterna.
2. Os sistemas educativos em crise
Mas não é só a nossa relação com a morte e os falecidos que está em crise ou em mudança de paradigma. Também os sistemas educativos parecem estar mergulhados em profunda confusão de modelos, a começar pela família. Por motivos profissionais e económicos adia-se a maternidade e paternidade, até já se fala em congelar os óvulos e o esperma, para serem fecundados mais tarde, como se tudo fosse apenas um processo biológico, pondo de parte a importância dos fatores psicológicos e afetivos para a educação dos seres humanos.
A seguir vem a escola, que deveria ser uma ajuda aos pais e às crianças no processo da sua socialização e não apenas uma aprendizagem de conteúdos, cada vez mais na área da matemática e das ciências e menos na arte de pensar e se relacionar com pessoas da nossa cultura e de outras culturas linguísticas. Apenas o inglês, mais por motivos económicos que culturais, se salva nesta babel cultural.
A confusão torna-se mais gritante com a colocação dos professores, em que os critérios de humanidade e familiares pouco contam, mas principalmente as prioridades de carreira. Desafio as pessoas envolvidas, professores, sindicatos, assembleia da república e governo a fazerem um profundo estudo e diálogo da questão e só depois de tudo bem estudado e acordado, com programas informáticos experimentados e seguros, proceder às reformas necessárias do sistema educativo.
Ficou famoso o Maio de 68 com a contestação generalisada dos estudantes, não apenas da escola, mas também da sociedade. Antes que outra confusão aconteça temos de despertar para esse estudo profundo, a começar pelos políticos e outros responsáveis pela escola, universidades incluídas. A escola do livro único, do ensino unificado e exlusivamente académico estão ultrapassadas. As estruturas mentais e os interesses das pessoas e grupos são diversificados. Mas há alguns denominadores comuns que importa ter em conta e atender às diferentes necessidades da sociedade nacional e internacional, para orientar as áreas de ensino e de investigação do ensino superior.
Quando há problemas, criam-se comissões de estudo, entrega-se à judiciária ou à Procuradoria Geral da República para apurar responsabilidades. Por vezes isso significa simplesmente retirar as questões da participação pública e as conclusões e resultados desses estudos e investigações nunca se sabem. Com a educação não podemos fazer isso, pois interessa e diz respeito a todos. Qualquer comissão que se crie nesta área tem de ser mais para lançar perguntas e coligir as respostas em ordem ao futuro do nosso sistema educativo.
† António Vitalino, Bispo de Beja
27 de Outubro - 2014
Reanimar a família humana e eclesial
1. Futuro da família
Nestas últimas semanas a família andou na berlinda. Durante quinze dias o Sínodo extraordinário dos bispos em Roma, com cerca de 200 representantes de toda a Igreja Católica, debateram os problemas que afetam as famílias na atualidade, não apenas na sua relação com a Igreja, mas também com a sociedade e os diversos sistemas políticos. Mas a comunicação social salientou sobretudo questões periféricas, como a admissão aos sacramentos dos recasados depois de um casamento canónico e dos diversos tipos de uniões para além daquela que constitui o casamento católico, ou seja, a união de um homem e de uma mulher para constituir uma comunhão de vida.
O Papa Francisco pediu aos participantes para apresentarem os problemas reais que afetam as famílias e não belos discursos sobre as ideias de cada um acerca da família. Tratando-se de um Sínodo em dois tempos, que terminará em outubro de 2015, neste primeiro tempo interessava apresentar a realidade, em todas as suas facetas e problemáticas e sensibilizar a Igreja para o acolhimento de todos, sem aceção de pessoas ou exclusão de quem não vive de acordo com as normas jurídicas da Igreja no que concerne à família.
Apresentar caminhos de inclusão e não de rejeição é a missão da Igreja. Cristo traçou-nos metas e objetivos, mas deu-nos o exemplo do acolhimento, da misericórdia e do perdão. Praticar o evangelho da família na verdade e na caridade não é tarefa fácil e simples, que se pode delinear em princípios e normas universais e objetivas. Sem cair no relativismo de que tudo está certo, também não podemos apregoar uma rigidez insensível e aplicável em todas as situações na pastoral familiar.
Isto vai exigir muito dos pastores, em comunhão com o sucessor de Pedro, o Papa. Até à próxima sessão do Sínodo dos Bispos, em outubro de 2015, teremos que dialogar muito e sobretudo afinar as nossas sensibilidades e métodos na abordagem dos problemas que afetam as famílias. Mais que de normas precisamos de atenção mais concreta às pessoas que constituem a família e um coração sensível e acolhedor de todos na comunhão da Igreja, convictos de que sem família não há futuro para a sociedade e a Igreja.
2. A diocese de Beja prepara mudanças
Também na diocese de Beja temos um longo caminho a percorrer, para ajudar a construir a família eclesial. O acolhimento e inclusão das diversas sensibilidades e dons, para que todos contribuam para a construção da família humana, são tarefa e missão sempre a iniciar e recomeçar através de múltiplas atividades, seja na área da formação, da oração e do culto e principalmente na prática da caridade apostólica. Crescer na fé e na prática da caridade é o lema deste ano pastoral e desempre. Para isso precisamos de novos impulsos, pois todos corremos o perigo de estagnar e quem pára, recua.
Neste sentido felicito os organizadores de vários acontecimentos no último fim de semana: o centro diocesano missionário com a jornada diocesana das missões, em Aljustrel, a mensagem de Fátima com a sua assembleia diocesana, o caminho neo-catecumenal com o convívio das comunidades em Milfontes, etc.
Mas, numa diocese tão dispersa e com pouca percentagem de católicos comprometidos em movimentos e serviços, temos de coordenar melhor as nossas ações, para evitar uma maior dispersão. Felicito os organizadores da jornada missionária diocesana, que se empenharam em concretizar um programa rico de formação e animação, em Aljustrel. Muitas paróquias e movimentos estiveram ausentes e perderam uma grande oportunidade de se formar, conviver, divertir e orar. Espero que de futuro orientemos melhor as nossas agendas, pois o Dia Mundial das Missões só acontece uma vez por ano e toca uma dimensão essencial da vida da Igreja.
Com a vinda do Bispo Coadjutor, D. João Marcos, esperamos poder dar um forte impulso na construção da família diocesana. Neste fim de semana já esteve entre nós, para combinarmos alguns pormenores do início da sua missão como Bispo Coadjutor, e que num futuro próximo será o meu sucessor. Vai ser ordenado bispo na igreja dos Jerónimos, em Lisboa, no dia 23 de novembro, pelas 16,00 horas. Espero que uma forte delegação da diocese possa participar na ordenação do nosso futuro bispo, clero e leigos. Na semana seguinte virá para Beja e será apresentado solenemente à diocese na celebração do primeiro domingo do Advento, no dia 30 de novembro, pelas 17,00 horas, na igreja de Santa Maria da Feira.
Por este motivo e pelo atraso nas respostas de vários arciprestados sobre as reflexões sinodais, decidimos adiar a próxima assembleia sinodal, prevista para o dia 8 de novembro, para uma data em que já possamos contar com a sua presença, que nos ajudará a crescer na fé e na prática da caridade, citando o lema deste ano pastoral, sobretudo com o seu exemplo e sensibilidade de artista. Atendendo a muitos pedidos e após ver o seu local de residência, decidiu trazer com ele os seus pincéis de pintor, pois pela arte também se evangeliza. Entretanto continuamos a interceder por ele na nossa oração, preparando-nos para o acolher nesta família diocesana, sempre em construção.
† António Vitalino, Bispo de Beja
20 de Outubro de 2014
A família na pastoral da Igreja
1. Papel da família na sociedade e na Igreja
Diariamente somos confrontados com pessoas e grupos desajustados do meio em que vivem, que levantam problemas ambientais e de convivência social. Alguns vão parar aos estabelecimentos prisionais, a rebentar pelas costuras, excedendo largamente a sua capacidade física, para não falar das casas de reinserção, onde são acolhidos os delinquentes menores de idade. Embora as causas sejam múltiplas e diversas, no entanto poderemos facilmente encontrar alguns factores comuns em todos eles. Nesta breve nota vou apenas falar do papel da família, sempre a considerar nas problemáticas sociais e a ter em conta nos sistemas educativos e na ação da Igreja.
No dia 5 de outubro, em Portugal memória da implantação da República, começou em Roma um Sínodo Extraordinário sobre os desafios pastorais da família no contexto da evangelização, que foi precedido de um longo inquérito sobre a real situação da família em todas as dioceses do mundo, respondido por clérigos e leigos. O Papa Francisco, na homilia da Missa de abertura, disse aos participantes que não se tratava de fazer belos e inteligentes discursos sobre as suas ideias de família, mas de cuidar como pastores do bem da família, de acordo com o sonho e o desígnio de amor de Deus por ela.
Com os sinodais também nós refletimos sobre a família e, partindo das realidades que conhecemos e do sonho de Deus sobre a felicidade dos membros da família, queremos apontar algumas metas possíveis em ordem ao maior bem de todos.
Em primeiro lugar, gostaria de focar o sonho dos próprios noivos quando decidem unir as suas vidas. Com certeza que se trata de um sonho de amor, que pode encontrar muitos obstáculos na sua realização. Diz-se que a paixão cega, mas sem encantamento e paixão também não é possível unir a vida de duas pessoas. Por isso o tempo de namoro e a ajuda de casais e famílias experientes é importante, para que não fique frustrado um projeto tão nobre e significativo para o casal e a sociedade.
Da parte da Igreja é necessário ter equipas de casais, que ajudem a concretizar este projeto. Temos os Centros de Preparação para o Matrimónio (CPM), em vários lados (na nossa diocese, em Beja, Moura e Santiago do Cacém), que devem ser apoiados por todos nós, pois desempenham um papel muito importante na pastoral da família. É preciso divulgar bem os cursos programados ao longo do ano e não condescender com pressas de alguns noivos, pois a pressa é sempre má conselheira.
Em segundo lugar, temos de descobrir estratégias de acompanhamento dos casais, para que a paixão se transforme em amor autêntico, sempre preocupado com o bem do outro, e os obstáculos que vão aparecendo, uns vindos de dentro outros de fora, possam ser superados.
Em alguns lados já se constituiram gabinetes de apoio famíliar, com casais experientes em várias áreas. Para eles devemos orientar os casais e famílias com sinais de alguma crise, para que possam ser ajudados. Isto exige muita atenção de todos os agentes pastorais, para não deixar isso apenas aos advogados e psicólogos.
2. Sínodo sobre a família e os recasados
Temos de ser criativos e persistentes na evangelização, na inclusão de todas as gerações na sociedade e na ação da Igreja, pois costumes e ambientes arraigados não se mudam numa só geração. Embora todos sejamos muito ciosos da nossa liberdade individual, sabemos que as pessoas apenas se realizam no encontro de várias liberdades para buscar e promover o bem uns dos outros. Se ninguém deve viver para si mesmo, muito menos na família.
Infelizmente, nem sempre somos eficazes na preparação dos matrimónios nem no acompanhamento dos casais e das famílias. Cada vez mais nos deparamos com pessoas que já tentaram refazer o seu casamento uma ou mais vezes. Como proceder?
Sabemos que Deus não faz aceção de pessoas nem quer excluir ninguém do seu projeto de amor e de salvação. Também a Igreja deve assumir a mesma atitude. Mas como? Não pode ser tudo igual. Dizia Tolstoi que as famílias felizes são todas iguais, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Isto quer dizer que na nossa ação pastoral não podemos tratar todos da mesma maneira. Não se trata apenas de excluir os recasados da Comunhão e da missão de padrinhos. Há muita mais pastoral da Igreja para além da Comunhão e do Batismo.
A riqueza da graça de Deus, do seu amor salvífico, não se confina só a isso. O mesmo podemos dizer da missão da Igreja e do papel dos batizados na comunhão da Igreja. Os batizados recasados não são excluídos da Igreja nem estão excomungados. Continuam a ser fiéis que Deus quer salvar através da Igreja. Como proceder pastoralmente com estes fiéis?
Também nós aguardamos inspiração deste Sínodo, para enriquecer a nossa ação junto destes casais e destas famílias.
† António Vitalino, Bispo de Beja
07 Out2014
Convivência de gerações
1. Inclusão das gerações
No dia 28 de setembro o Papa Francisco convidou os avós a estar com ele, para celebrar o dia a eles dedicado, dizendo que também se incluia no seu número. Entre os convidados estava o Papa emérito, Bento XVI, a quem o Papa saudou com muito carinho, dizendo que sentia a sua presença no Vaticano como tendo em casa o avô sábio. Foi sobretudo emocionante o testemunho de dois idosos do Iraque, contando a brutalidade da guerra, o assassínio da família e a perda de todos os seus bens.
Foi mais um gesto do Papa Francisco, alertando para o valor e a dignidade da pessoa idosa, hoje muitas vezes tratada como algo descartável, esquecida pelos familiares mais novos nos hospitais, nas casas e nos lares, que devem ser casas e não prisões. Assim se perde a memória e as raízes da nossa história e se hipoteca o futuro da sociedade.
No dia 27 celebrámos o Dia Diocesano, com o qual queremos dar um forte impulso ao arranque do ano pastoral. Na nota de abertura do anuário, uma breve introdução ao plano pastoral, pedia a oração pela nomeação do Bispo Coadjutor, que virá a ser o meu sucessor na diocese.
A esse propósito alguém me perguntou, qual seria o meu papel quando o Coadjutor se tornasse o bispo diocesano. Respondi como escrevi na nota: importa que ele cresça e eu diminua, acrescentando e depois desapareça. Ao que o meu interlocutor respondeu: não deixaremos que desapareça, pois manteve consigo o seu antecessor, D. Manuel Falcão e tratou-o muito bem.
Embora eu saiba que nem todos somos iguais e santos como era D. Manuel Falcão, uma bênção para mim e a diocese, no entanto percebi que há muitas pessoas a compreender a importância dos mais velhos na nossa Igreja e na sociedade e avaliam a nossa missão também a partir do modo como tratamos os mais idosos.
Também nisto se verificou a verdade da expressão do Papa: sentia a segurança de ter em casa um avô sábio, experiente e confidente.
Todos, a começar por mim, temos de ajudar as nossas comunidades a integrar os idosos na ação apostólica, presbíteros incluídos, não os atirando para um lar ou residência sacerdotal, sem qualquer função na sociedade e na Igreja.
Foi particularmente comovente o testemunho humilde do Cónego Aparício, um dos presbíteros mais significativos na história da nossa diocese, que deixou uma das paróquias mais importantes da cidade de Beja, para assumir a paroquialidade de uma pequena aldeia nas imediações de Beja, a dois meses de completar oitenta anos de vida. Isto é concretizar aquilo que o Papa Francisco chama ir até às periferias geográficas e existenciais, para aí anunciar a boa nova do Evangelho e incluir nesta missão a sabedoria dos mais idosos.
2. Construção de comunidades inclusivas
Na semana passada escrevi que iria continuar as minhas reflexões sobre a construção de comunidades eclesiais abertas e significativas. Na brevidade desta nota quero indicar mais um aspeto desse processo, apontando o gesto papal e as experiências recentes na minha atividade episcopal.
Fez parte da agenda do Dia Diocesano a apresentação dos resultados da prática dominical de acordo com o recenseamento feito a 16 e 17 de novembro de 2013. A partir da constatação da baixa presença nas missas dominicais das pessoas entre os 15 e os 39 anos, perguntava-se aos representantes dos seis arciprestados como proceder para subir a percentagem da sua participação nas eucaristias dominicais, assim como a das pessoas do sexo masculino.
As respostas foram ricas e variadas. É preciso continuar a reflexão e encontrar medidas concretas de ação apostólica nas paróquias e movimentos. Avanço apenas uma de caráter geral. No Alentejo há uma mentalidade e tradição de que a Igreja e a religião são para as crianças e as mulheres, embora os homens respeitem a Igreja e sejam religiosos.
A minha sugestão é, para além de uma profunda conversão de todos nós, a mudança no estilo de evangelização e de colaboração daqueles que estão à frente das comunidades e dos que delas fazem parte, sobretudo crianças, mulheres e idosos. Ou seja, trabalhar mais a partir da família e incluir na nossa prática pastoral todas as gerações, com especial atenção para os mais frágeis, crianças e idosos. Encontrar modos de envolver mais a família na catequese, na celebração dos sacramentos, na vivência da caridade, embora compreendendo a menor disponibilidade das pessoas que estão na vida ativa.
Recordo-me do trabalho paroquial da minha juventude sacerdotal. Como as famílias foram interpeladas quando organizamos melhor a catequese paroquial, criamos grupos musicais com os jovens que andavam pelas ruas de viola às costas e se reuniam em pequenos grupos, da visita aos idosos e doentes que ficavam em casa enquanto os filhos saíam de manhã cedo para o trabalho e regressavam a casa muito tarde.
Isto foi chamando a atenção das pessoas na vida ativa, a ponto de a encarregada da catequese no Patriarcado, chamada para fazer a preparação das famílias para a festa da primeira comunhão das crianças, ter exclamado admirada: até que enfim encontro uma paróquia onde as crianças têm pais e não somente mães.
Temos de ser criativos e persistentes na evangelização, na inclusão de todas as gerações na sociedade e na ação da Igreja, pois costumes e ambientes arraigados não se mudam numa só geração.
† António Vitalino, Bispo de Beja
29 Setembro2014
Coesão na diversidade
1. Convivência na diferença
A diferença incomoda muita gente. Ao longo da história da humanidade tem havido muitas guerras e discórdias por causa das diferenças entre pessoas, raças, cores, sistemas políticos e ideológicos, religiões, etc., para não mencionar a ambição do poder, do domínio e do ter.
No domingo passado o Papa Francisco visitou um pequeno país onde prima a diferença em todos os sentidos, mas as pessoas vivem em paz, procuram o consenso em vista do bem comum. Estou-me a referir à Albânia, um país pequeno, com a superfície do Alentejo, mas montanhoso, onde católicos, muçulmanos, ortodoxos e ateus convivem pacíficamente.
No mesmo dia realizou-se um referendo na Escócia sobre a independência ou não em relação ao Reino Unido. E na Catalunha continua acesa a discussão sobre a sua separação da Espanha, na Madeira há vozes de maior autonomia em relação ao Continente, para não falar dos horrores perpetrados pelos que querem construir um estado islâmico, só de fiéis do Islão.
Enquanto o movimento da construção de uma comunidade europeia alargada, democrática, forte, com igualdade de direitos e deveres de todos os cidadãos parecia irreversível, surgem outras tendências que parecem contrárias à primeira, nascida dos escombros da segunda guerra mundial, para que isso nunca mais acontecesse.
Como interpretar estes novos acontecimentos? Serão ou não obstáculo à construção da comunidade europeia? Serão manifestações de egoísmo nacionalista ou compatíveis com um futuro de paz na Europa? Vão acentuar-se as desigualdades entre países e regiões ricas e pobres ou serão factores de progresso e crescimento para todos? Estas e muitas outras interrogações vêem à nossa mente, para as quais não encontramos respostas, mas não podemos cruzar os braços como espectadores impassíveis.
Neste ambiente de tendências contraditórias é importante apontar algum bom exemplo. Olhando para a Albânia, para o seu povo, pobre, jovem, unido apesar das diferenças étnicas e religiosas, sentimos que não é a riqueza nem a diversidade a causa da coesão desse povo.
Depois de uma longa ditadura do comunismo ateu militante, com muitos mártires da fé e das convicções democráticas, o povo albanês descobriu o valor da liberdade e da fraternidade, vivendo a sua identidade étnica e religiosa no respeito pela diversidade dos credos de cada um. O ter e o poder afastam as pessoas umas das outras e criam invejas, rivalidades e desigualdades.
Este modelo de convivência pacífica na diferença e no respeito pelas convicções e credos de cada pessoa, famílias e comunidades, poderá ajudar-nos a construir uma Europa das pessoas e povos diferentes, mas iguais na dignidade da pessoa humana.
2. Construção de comunidades abertas
Estamos a arrancar um novo ano pastoral na diocese de Beja. As escolas já abriram as portas, embora ainda com muitas falhas na colocação de professores e no encerramento de escolas com menos de 21 alunos nas aldeias. Também os tribunais se tornaram mais distantes e não apenas pela avaria no sistema informático. Espero que na vida da igreja diocesana não aconteça o mesmo, embora saiba que também temos muitas fragilidades.
No entanto temos os meios da medicina espiritual ao nosso alcance: a participação de todos os batizados na construção das nossas comunidades locais, com o tempo e as capacidades de que estamos dotados; a compreensão, atenção e reconciliação entre todos os membros desta igreja e sobretudo a abertura àqueles que fazem parte do nosso meio, aldeias e cidades, mas não frequentam diretamente os nossos locais de culto.
Como conseguir criar comunidades fraternas e atentas a todos os que vivem ao nosso lado? Aqui reside a criatividade pastoral, não apenas do clero, mas de todos os colaboradores na missão.
Como convocamos e convidamos as pessoas para esta missão, seja para os conselhos económicos e pastorais das paróquias, seja para as direções dos centros sociais, seja para a formação de crianças e adultos, seja para os diferentes ministérios na celebração da fé (leitores, cantores, acólitos, ministros extraordinários da comunhão, pessoas para o acolhimento, visitadores de doentes e pobres), etc?
Os métodos podem ser diferentes, mas se não atingimos os objetivos pretendidos, temos de ver onde falhamos e talvez mudar. Não empurrar as dificuldades para os outros, mas estar conscientes de que o maior obstáculo pode estar em nós mesmos. Este é o caminho para a mudança, partindo duma revisão de vida em que impera a criatividade da caridade.
Outros passos teremos de dar para construir pelo menos núcleos, que são fermento de comunidades fraternas, abertas e inclusivas ao modo de Jesus Cristo, que disse: minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática.
Sobre isso poderemos refletir noutra altura, agradecendo sugestões, para as partilhar em benefício de todos.
† António Vitalino, Bispo de Beja,
23/SET/2014
Inclusão dos frágeis
1. Dimensão social da evangelização
Na semana passada tiveram lugar em Fátima as Jornadas anuais da Pastoral Social, desta vez sob o tema da dimensão social da evangelização, aprofundando e descrevendo concretizações do quarto capítulo da Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, que tem por título esse preciso tema. Foram comunicações interessantes, que nos colocaram muitas interrogações sobre a qualidade da nossa fé e apostolado. Mas creio que estes números do documento papal tocam os fundamentos da missão da Igreja, porque nos apresentam a originalidade da vida de Cristo e do seu Evangelho.
Na Sinagoga de Nazaré Jesus apresentou a missão do Messias, que era Ele próprio, repetindo a profecia de Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.»(Lc 4, 18-19).
Creio que ninguém tem dúvidas acerca do sentido destas palavras e de como Jesus as cumpriu na sua pessoa e na sua vida. A continuação desta missão no tempo e no espaço, através da história e do universo, foi confiada aos apóstolos e discípulos de todos os tempos e lugares. Estamos conscientes das suas exigências e da debilidade dos discípulos. Mas não podemos desculpar-nos com falsa apologética ou malabarismos exegéticos. Por isso todos os discípulos têm obrigação de fazer o exame de consciência, bater com a mão no peito por causa dos seus pecados, por pensamentos, palavras, acções ou omissões e aperfeiçoar o seu modo de seguir o Mestre e cumprir a missão que lhes foi confiada.
A fé sem obras é morta, diz o apóstolo S. Tiago. Mas também as obras sem fé, sem a confiança no Senhor da Messe e a disponibilidade em segui-Lo, amando-nos uns aos outros como Ele nos amou, fazendo uns aos outros como Ele fez, pode cair num puro activismo, que atribui tudo ao discípulo, como se pudesse mudar o mundo e resolver todos os seus problemas apenas a partir de si mesmo e das suas obras. Isto seria orgulho da nossa parte e mentira acerca da nossa dignidade e dos outros. Não somos máquinas ou activistas de alguma ideologia, mas filhos de Deus e irmãos uns dos outros, chamados a olhar e cuidar uns dos outros.
Em poucas palavras o Papa Francisco o diz no início do capítulo IV: Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. Ora isto tem repercussões comunitárias e sociais, como o Papa explica em todo este capítulo, que acentua muitas dimensões da vida e missão da Igreja, muitas delas esquecidas ou até mesmo deturpadas. Conscientes de todas as dimensões da nossa vida cristã e da vocação a que fomos chamados, temos de exclamar como S. Paulo:Ai de mim se não evangelizar.
2. Colocar os frágeis no centro
Todos somos tentados em pensar e agir como senhores e não como servos dos outros, sobretudo dos mais pobres, como se estes apenas fossem sujeitos passivos das nossas boas acções e nada nos tivessem a dar. Recordo os testemunhos de Jean Vanier, fundador da Arca, ou seja, de comunidades de e com deficientes, em que ele nos diz quanto recebe destes, muito mais do que aquilo que lhes dá. O mesmo podemos ler nos muitos livros de Henri Nouwen, um teólogo e psicólogo holandês, que mudou a sua vida de conferencista famoso quando se encontrou com as comunidades da Arca e nelas viveu. Muito conhecido é o seu livro O Regresso do Filho Pródigo.
Isto acentua o Papa Francisco na Exortação que estamos a comentar. Nos números 186 a 216 ele explica como deve ser a inclusão social dos pobres, que devem ser protagonistas da missão da Igreja. Olhando para Jesus Cristo, para o seu amor preferencial pelos pobres e pecadores, muito temos a aprender e mudar na nossa evangelização. Quando isto começar a acontecer, então poderemos falar da primavera da Igreja, tão sonhada pelo bom Papa S. João XXIII e que o Concílio Vaticano II e os Papas seus sucessores procuraram implementar na vida da Igreja. É isto também que eu sonho e convido todos a sonhar comigo, a arregaçar as mangas e organizar a diocese, as paróquias e serviços neste sentido.
Ao iniciarmos um novo ano pastoral, em que desejamos acentuar a dimensão da caridade na vida da Igreja, agradeço a todos os que com generosidade se esforçam por colaborar na nobre e exigente missão da Igreja diocesana, agora envolvida num Sínodo e exorto todos os colaboradores a unirem esforços no sentido de uma evangelização mais integral das comunidades, famílias e ambientes da nossa diocese, tendo em conta a grave crise de fé, de valores e de falta de trabalho que nos afecta.
Temos um longo caminho a percorrer, mas não desanimamos. Assim Deus nos ajude e Nossa Senhora das Dores, dia em que escrevo esta nota, interceda por nós. Na próxima semana, dia 22, teremos o encontro do clero. Vamos nomear novos arciprestes, escolher um novo Conselho Presbiteral, decidir algumas orientações e acções para o próximo ano pastoral e apresentá-las à diocese no Dia Diocesano, a 27 do corrente mês, altura em que nomearemos a nova Direcção da Caritas Diocesana. Estamos gratos a todos aqueles que animaram a diocese na área sociocaritativa durante estes últimos anos e pedimos a bênção de Deus e colaboração dos diocesanos com a nova equipa.
† António Vitalino, Bispo de Beja
15 de Setembro/2014
Reconciliar e perdoar
1. Sentinelas da paz
Semanas atrás o Papa Francisco visitou duas regiões do planeta que desde há muitos anos vivem em permanente tensão, onde, de vez em quando, rebenta um conflito armado e há corte de relações. Refiro-me ao Médio Oriente, sobretudo Israel e Palestina e Extremo Oriente, a Coreia. Essas visitas, repletas de belos discursos e gestos simbólicos parecem ter sido inúteis. O Papa rotulou a situação mundial de início de uma guerra mundial aos pedaços. Para quem viveu os horrores da segunda guerra mundial e sofreu as suas terríveis consequências, deveria tentar tudo para que isso não se tornasse verdade.
Na missa deste último domingo as leituras bíblicas lembraram a missão dos cristãos e da Igreja a este respeito. O profeta Ezequiel dizia que devemos ser sentinelas que advertem os pecadores e transgressores da ordem, pois se não o fizermos somos corresponsáveis pelo mal que acontece e chamados a sofrer também o castigo.
Ao meditar este trecho bíblico, adveio-me o pensamento da inutilidade de tantas esforços e tentativas da Igreja e das organizações internacionais para estabelecer a paz entre os povos e dentro de alguns países profundamente divididos e envolvidos em guerras civis. Será que vamos às causas dos conflitos? Serão inúteis todos os esforços?
A Fundação Calouste Gulbenkian concedeu o prémio deste ano de 2014 a uma organização católica conhecida por Comunidade Santo Egídio, movimento nascido há 50 anos, durante o Concílio Vaticano II, no bairro romano de Trastevere e que hoje está espalhado em mais de 70 países, com cerca de 60 mil leigos empenhados em promover o diálogo ecuménico e em apoiar pessoas sem abrigo, idosos, crianças, presidiários, vítimas de guerras e imigrantes, assim como em mediar conflitos através do diálogo, da oração e do testemunho de vida comunitário.
É bem conhecido o seu papel na reconciliação dos movimentos armados na guerra civil em Moçambique. Divulgando os valores e princípios de um novo humanismo, esta comunidade acredita que a paz é possível. Aqui está uma maneira de ser sentinela da paz e da reconciliação entre os povos.
Por isso não desiste de acreditar e intervir em situações de conflito. Assim também o Papa Francisco. E nós, como vivemos e agimos face a tantas situações de conflito, a começar pelas nossas famílias e comunidades cristãs? As leituras deste domingo deram-nos matéria para alimentar as nossas convicções e actividades ao longo do ano e da vida. Na carta aos Romanos S. Paulo diz-nos que não devemos ficar a dever nada a ninguém, a não ser o amor de uns para com os outros, no qual consiste o pleno cumprimento dos mandamentos.
E nós, nas empresas, na sociedade, no Estado devemos tantos justos salários e remunerações, sinal de que o amor ao próximo e a justiça andam muito espezinhados.
Mesmo dentro das comunidades cristãs o evangelho de S. Mateus aponta-nos como devemos resolver os nossos conflitos, apenas desistindo quando o prevaricador não quer dar ouvidos a ninguém. Muitas vezes tornamos impossível o diálogo, começando por não ouvir o próprio nem ninguém. Assim é impossível o ministério da reconciliação.
2. Renovar os métodos da nossa pastoral
No sábado, de tarde, reuni com cristãos comprometidos vindos de todos os cantos da nossa diocese, em ordem a iniciar uma acção de formação para os qualificar melhor para a missão da Igreja. Temos de ser criativos na formação e acção dos nossos colaboradores. Pena que muitas vezes não disponibilizamos o nosso tempo para esta qualificação nem encontramos os meios mais adequados para o conseguir. Mas desistir é pecado.
Seremos responsabilizados pela omissão de sermos sentinelas e promotores de comunidades que se empenham na reconciliação das pessoas, das famílias e da sociedade. Muitas vezes ficamos no lamento pessimista de que tudo anda mal. Vemos o argueiro na vista dos outros, julgando-os precipitadamente e estamos cegos para as imensas possibilidades de nos convertermos em profetas da esperança, do amor, da justiça e da paz.
A grande renovação da Igreja, isto é, de nós, cristãos baptizados e dos frequentadores dos nossos templos, tem de começar pela conversão e renovação pessoal das nossas convicções e atitudes. E, a seguir, estarmos atentos a quem manifesta vontade em caminhar, mas se encontra perplexo, com dúvidas, só e desanimado. É preciso escutar, acompanhar, perguntar sobre as razões profundas do desânimo, iluminar os companheiros de caminho a partir da nossa fé e experiência e reconduzi-los à alegria da comunidade, que celebra e vive a realidade de Cristo ressuscitado. Isto nos mostra o trecho do evangelho de S. Lucas, cap. 24, conhecido por história dos discípulos de Emaús.
Este mesmo método de acção segue o Papa Francisco e na sua grande Exortação Apostólica Alegria do Evangelho propõe para toda a Igreja, cuja leitura e reflexão recomendo, não apenas alguns números semanalmente, como o faz o Notícias de Beja, mas como livro que se começa a ler sem intercalar muitos outros. Por hoje fico-me por aqui. Na nossa caminhada sinodal voltaremos ao assunto.
† António Vitalino, Bispo de Beja,
08 de Setembro de 2014
Recomeçar sem desvarios
GRATIDÃO E INCOMPREENSÕES
1. Gratidão aos pastores
Nos meses de Junho e Julho costuma haver em quase todas as dioceses ordenações de novos membros do clero, assim como jubileus de ordenação de muitos daqueles que há diversos anos dedicam as suas vidas à construção do Reino de Jesus Cristo.
Na nossa diocese, no dia 28 celebramos as bodas de diamante (60 anos) do sacerdócio dos padres Manuel Alves e José Pires Soares, na solene celebração de ordenação de dois novos presbíteros, na Sé de Beja. No dia 19 de Julho, na igreja matriz de Sines foram as bodas de ouro do Padre José Fernandes Pereira. Em algumas paróquias até celebram anualmente o dia da ordenação do seu pároco.
É belo ver as comunidades cristãs recordarem a data de ordenação do seu pároco e seria também muito bonito que o fizéssemos em relação aos diáconos permanentes, pois já vai havendo alguns na nossa diocese e preparamo-nos para formar mais alguns. Apesar de sabermos que a nossa vocação é uma escolha amorosa de Deus, que não depende da nossa santidade ou inteligência, e por isso agradecemos a Deus essa eleição e vivemos o nosso ministério em atitude missionária, no entanto todos gostamos de sentir que o povo de Deus, as comunidades que construimos e alimentamos espiritualmente apreciam e agradecem a nossa dedicação. Isso aumenta a nossa certeza de que estamos a ser úteis, se assim nos podemos exprimir em relação ao nosso múnus.
Algo semelhante acontece nas famílias. As esposas, os maridos, os pais, os filhos, os avós gostam de ouvir um sincero obrigado pelas inúmeras ações que praticam uns em relação aos outros, nem que seja um simples sorriso da criança ou um beijo. Quando isso acontece a vida familiar torna-se mais fácil, mesmo que imersa em grandes responsabilidades e trabalhos.
Em nome próprio e da diocese queria agradecer às paróquias, serviços e movimentos pelos diversos momentos de manifestações de gratidão em que tive ocasião de participar. Mesmo não tendo podido estar em todas, aqui deixo o meu agradecimento e apreço. Continuem.
2. Críticas e ingratidões
Infelizmente também acontece o contrário. É tradicional a nossa inclinação para a inveja, a má língua, a crítica destrutiva, a ingratidão. Temos dificuldade em aceitar que outros saibam mais do que nós e tenham razões para decidir e agir de modo diferente das nossas conveniências e interesses.
Embora na Igreja devamos construir comunidades conscientes e responsáveis e isto não acontece sem comunicação, formação, partilha fraterna e oração, não pode ser cada cabeça cada sentença, como se a verdade da nossa fé dependesse dos interesses de cada um. Só uma Igreja em profunda comunhão colegial, fiéis leigos, consagrados e clero é a Igreja de Jesus Cristo. Por isso temos necessidade de aprofundar sempre a nossa fé em Jesus Cristo, pois ninguém nasce ensinado e a fé nasce da escuta, da transmissão através de testemunhas.
Discernir as verdadeiras testemunhas da fé pertence ao Bispo com seus colaboradores. Isto implica uma atenção muito grande aos impulsos do Espírito Santo na vida da Igreja e requer de todos nós o pedido incessante em oração, para que Deus O envie sobre esta sua Igreja, que nós queremos servir.
Nas últimas semanas tenho corrido muitas paróquias a celebrar o sacramento do Crisma ou Confirmação, normalmente reservado ao Bispo e pelo qual temos a certeza que recebemos o Espírito Santo. Mas também verifico que nem todas as pessoas têm as mesmas disposições e preparação. Algumas vezes tenho de advertir os párocos e catequistas para fazerem um melhor discernimento, pois não é pelo facto de o Direito Canónico exigir os três sacramentos da iniciação cristã, a saber, baptismo, crisma e comunhão, para se gozar dos direitos de cristãos adultos na vida da Igreja, entre eles o direito de ser padrinho ou madrinha, que devemos admitir qualquer pessoa, sem a devida preparação e vontade de viver de acordo com a fé cristã.
Quando se diz às pessoas que não podem viver em união de facto e receber os sacramentos, somos criticados e até difamados, como se receber os sacramentos fosse um direito individual que não implica os outros sacramentos, entre eles o matrimónio e a confissão ou reconciliação. Não é pelo facto de sermos pecadores que os sacramentos nos são negados, mas sim por não reconhecermos o nosso pecado, não nos querermos converter e mudar. A isto se chama presunção de se salvar sem merecimentos e obstinação no pecado.
Por isso temos uma grande missão a cumprir, com muito amor, misericórdia e paciência, para não arrancar o trigo com o joio e as ervas daninhas. Nem sempre é fácil o cumprimento do múnus que nos está confiado, quer por fragilidade nossa, quer por incompreensão e debilidade da fé de quem nos pede os sacramentos. Mas água mole em pedra dura tanto dá até que fura, diz o ditado e constitui para a Igreja uma advertência para não desistir ou cruzar os braços.
Algo semelhante acontece nas famílias. As esposas, os maridos, os pais, os filhos, os avós gostam de ouvir um sincero obrigado pelas inúmeras ações que praticam uns em relação aos outros, nem que seja um simples sorriso da criança ou um beijo. Quando isso acontece a vida familiar torna-se mais fácil, mesmo que imersa em grandes responsabilidades e trabalhos.
Em nome próprio e da diocese queria agradecer às paróquias, serviços e movimentos pelos diversos momentos de manifestações de gratidão em que tive ocasião de participar. Mesmo não tendo podido estar em todas, aqui deixo o meu agradecimento e apreço. Continuem.
2. Críticas e ingratidões
Infelizmente também acontece o contrário. É tradicional a nossa inclinação para a inveja, a má língua, a crítica destrutiva, a ingratidão. Temos dificuldade em aceitar que outros saibam mais do que nós e tenham razões para decidir e agir de modo diferente das nossas conveniências e interesses.
Embora na Igreja devamos construir comunidades conscientes e responsáveis e isto não acontece sem comunicação, formação, partilha fraterna e oração, não pode ser cada cabeça cada sentença, como se a verdade da nossa fé dependesse dos interesses de cada um. Só uma Igreja em profunda comunhão colegial, fiéis leigos, consagrados e clero é a Igreja de Jesus Cristo. Por isso temos necessidade de aprofundar sempre a nossa fé em Jesus Cristo, pois ninguém nasce ensinado e a fé nasce da escuta, da transmissão através de testemunhas.
Discernir as verdadeiras testemunhas da fé pertence ao Bispo com seus colaboradores. Isto implica uma atenção muito grande aos impulsos do Espírito Santo na vida da Igreja e requer de todos nós o pedido incessante em oração, para que Deus O envie sobre esta sua Igreja, que nós queremos servir.
Nas últimas semanas tenho corrido muitas paróquias a celebrar o sacramento do Crisma ou Confirmação, normalmente reservado ao Bispo e pelo qual temos a certeza que recebemos o Espírito Santo. Mas também verifico que nem todas as pessoas têm as mesmas disposições e preparação. Algumas vezes tenho de advertir os párocos e catequistas para fazerem um melhor discernimento, pois não é pelo facto de o Direito Canónico exigir os três sacramentos da iniciação cristã, a saber, baptismo, crisma e comunhão, para se gozar dos direitos de cristãos adultos na vida da Igreja, entre eles o direito de ser padrinho ou madrinha, que devemos admitir qualquer pessoa, sem a devida preparação e vontade de viver de acordo com a fé cristã.
Quando se diz às pessoas que não podem viver em união de facto e receber os sacramentos, somos criticados e até difamados, como se receber os sacramentos fosse um direito individual que não implica os outros sacramentos, entre eles o matrimónio e a confissão ou reconciliação. Não é pelo facto de sermos pecadores que os sacramentos nos são negados, mas sim por não reconhecermos o nosso pecado, não nos querermos converter e mudar. A isto se chama presunção de se salvar sem merecimentos e obstinação no pecado.
Por isso temos uma grande missão a cumprir, com muito amor, misericórdia e paciência, para não arrancar o trigo com o joio e as ervas daninhas. Nem sempre é fácil o cumprimento do múnus que nos está confiado, quer por fragilidade nossa, quer por incompreensão e debilidade da fé de quem nos pede os sacramentos. Mas água mole em pedra dura tanto dá até que fura, diz o ditado e constitui para a Igreja uma advertência para não desistir ou cruzar os braços.
† António Vitalino, Bispo de Beja
21JULHO2014
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