O senhor D. Manuel Falcão, que desde os quinze anos escreve nos jornais, soube utilizar, desde a primeira hora, o seu e nosso “Notícias de Beja” como tribuna privilegiada para anunciar o Evangelho e fazer uma correcta leitura cristã dos acontecimentos. À última colaboração, começada a 26 de Janeiro último, deu o nome sugestivo de “À laia de testamento espiritual”. Será que estaria a adivinhar a sua passagem, a dádiva total da sua vida à sua querida Diocese de Beja? Apareceram 4 reflexões. Transcreve-se a primeira: “Uma existência envolta em mistérios”.
À laia de testamento espiritual (1)
“É bom reflectir nos mistérios que envolvem a nossa existência e para eles chamar a atenção dos outros. É esta a minha intenção ao passar a escrito as reflexões que aqui tenciono publicar à laia de testamento espiritual.
Sentido da palavra mistério
No Dicionário da Academia das Ciências, a palavra “mistério” aparece com onze significados: uns de sentido comum (p. ex., realidade que aparece como desconhecida ou enigmática); outros de sentido religioso pagão (p.ex., actos de culto para iniciados); e outros ainda de sentido cristão (p.ex., dogma de fé definido pela Igreja, ou os “mistérios” do Rosário).
Nesta série de reflexões, a palavra “mistério” é empregada no sentido teológico de verdade a que temos acesso por revelação divina, mas que, pela sua transcendência, ultrapassa a nossa compreensão, embora a devamos guardar no mais íntimo do nosso ser (no que se costuma chamar o coração). A tais verdades nós, cristãos, devemos aderir pela virtude da fé, acalentada pela caridade, na esperança de que, depois da morte, as entendamos à luz do próprio Deus contemplado face a face.
Assim, são mistérios que envolvem a nossa existência humana: o da própria origem e razão de ser do Homem e do Universo; o do sofrimento e da morte que afectam a nossa vida; o da revelação divina ao longo dos séculos até à sua plenitude em Jesus Cristo; o da vida íntima de Deus; e o da Igreja por Cristo instituída e animada pelo Espírito Santo, para guardar e anunciar a todos os homens a revelação e a todos conduzir até à felicidade eterna.
Mistérios e verdades naturais
Ao longo da nossa vida, desde criança até à idade madura, procurámos entender o mundo que nos rodeia e em que nos movimentamos.
Para isso contámos com a observação pessoal, com a observação alheia a que tivemos acesso, com a experimentação e, especialmente hoje, com as descobertas das Ciências.
E isto, na ânsia de dominar o que chamamos a Natureza, de modo a tirar dela o que contribui para a nossa sobrevivência, para a nossa auto-satisfação e para uma vida cada vez mais segura e confortável.
Que, ao longo dos séculos, os conhecimentos práticos e científicos têm crescido, basta pensar no contraste existente entre os povos ditos civilizados e outros, especialmente os que ainda vivem à maneira do homem primitivo.
O acolhimento dos mistérios pelo pensamento moderno
O pensamento moderno, que nos países do Primeiro Mundo surgiu nos finais da idade Média e se tem desenvolvido sobretudo desde a Revolução Francesa, tende a despertar no homem o sentimento de íntima satisfação (de orgulho) e lhe dão a secreta (e falaz) alegria de se sentir capaz de tudo saber e tudo resolver em ordem a uma existência feliz.
Basta ver o que se ensina nas escolas, nas conversas entre amigos e nas mensagens da comunicação social reflectidas nas telenovelas.
Já passou o tempo em que o homem da rua pensava com os respectivos governantes e, nomeadamente, tinha a mesma religião que eles.
Hoje, somos constantemente convidados a ter as nossas próprias ideias a respeito de tudo e a nos governarmos com elas, pensando que só desta maneira nos podemos considerar verdadeiramente livres.
Daqui, a dificuldade do homem da rua em aceitar como verdades os mistérios, cujo sentido não pode compreender, tanto mais que eles são revelados aos espíritos humilde e confiantes, abertos a acreditar em Deus e no que Ele nos revela para nosso bem.
As reflexões que se seguirão, muito marcadas pelas revelações dos mistérios da fé, são convite aos nossos leitores para reflectirem à luz divina nas mais profundas realidades da nossa existência, para melhor admirar e adorar o Deus que no-las revelou.
Assim fazendo, tornamos mais viva a nossa religião, tanto mais que muitas vezes ela quase se limita aos actos rituais da liturgia e a certas orações feitas mecanicamente em determinadas horas do dia.
Por isso a estas reflexões resolvi dar o nome de “testamento espiritual”.
+ Manuel Franco Falcão,
Bispo emérito de Beja”
(Notícias de Beja, ed.de 26de Janeiro de 2012)
Recolha SDMBeja
Sem comentários:
Enviar um comentário