terça-feira, 12 de julho de 2016

Abraão, Marta, Maria…

1 -Entre. Quem é? Assim se respondia habitualmente, em algumas regiões de Portugal, quando alguém batia à porta. A confiança era a base do relacionamento entre as pessoas. De tempos a tempos havia uma exceção à regra mas, como norma, o outro era bem recebido. Ainda hoje os estrangeiros se surpreendem com a hospitalidade simpática e quase espontânea dos portugueses. Muita coisa está mudando entretanto, e vai-se dissipando essa cultura da confiança mútua e da hospitalidade. À medida que Deus desaparece da vida das pessoas, o outro começa a ser visto não como graça mas como ameaça, como uma eventual fonte de problemasCada vez mais se experimenta que, como escreveu Sartre, o inferno são os outros, e o medo leva as pessoas a fecharem-se na desconfiança e no silêncio e a olharem os estranhos, sem serem vistas, pelo buraco da fechadura.



A 1ª leitura do próximo domingo apresenta-nos a hospitalidade de Abraão. Naqueles três caminhantes desconhecidos que se aproximaram da sua tenda, Abraão reconheceu a presença de Deus e deu-lhes hospitalidade. Dessa sua abertura àqueles estranhos resultou que se tornou amigo e confidente de Deus e Sara sua esposa recebeu o dom da fecundidade. Sublinhemos estas três palavras: hospitalidade, amizade, fecundidade. A hospitalidade de Abraão é uma das mais belas imagens que prefiguram o mistério da Igreja: Deus vem ao encontro do homem e o homem recebe Deus que lhe dá acesso à Sua intimidade. A Igreja é este espaço onde Deus e o homem se acolhem mutuamente. Segundo o esquema básico de todas as religiões,Deus vive no Céu e o homem na terra. E é tão grande a distância entre eles que seria impensável encontrarem-se na vida presente, pois o homem ficaria esmagado pela glória divina. Mas a grande surpresa que deu origem ao Cristianismo é que o próprio Deus quer viver com os homens neste mundo para que estes se habituem e se preparem para viver com Ele eternamente no Céu. E encontrou maneira de a realizar.


2 - Lemos no Prólogo do Evangelho segundo S. João que o Verbo de Deus se fez carne e veio ao nosso encontro, veio ao que era seu e os seus não O receberam, mas àqueles que O receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo.1, 11-12). Muitos não O receberam e vivem sem Cristo. Nós, que nos dizemos cristãos, como O recebemos? Esta é a pergunta que nos faz o Evangelho deste domingo ao pôr diante de nós as irmãs Marta e Maria que, vivendo na mesma casa, O receberam diferentemente. (Lc10 38-42) Maria encontrou em Jesus a melhor parte, o único necessário, o Reino de Deus, o Mestre que tem palavras de vida eterna e, perante Ele, tudo o mais foi relegado a segundo plano. Marta, pelo contrário, inquieta e preocupada com muitas coisas, atarefava-se com muito serviço. Por amor do Senhor se atarefava, pensava ela e nós também, mas não saboreava a maravilha da Sua presença.

Marta e Maria são no Evangelho, simbolicamente, o mesmo que as duas esposas de Jacob, Lia e Raquel, no Antigo Testamento. Marta e Lia significam a vida ativa; Raquel e Maria, a vida contemplativa. Mas há uma diferença substancial: Jacob apenas recebe a sua amada Raquel depois de suportar Lia durante sete anos: primeiro Lia, e depois, como prémio, Raquel. No Novo Testamento, com Deus feito homem no meio de nós, é ao invés: primeiro Maria e Marta depois. É Maria que torna fecunda a atividade de Marta. É a partir da amizade com Cristo e como consequência de termos experimentado o seu amor que nos pomos ao Seu serviço. O que era visto como ponto de chegada na Antiga Aliança é o ponto de partida na vida cristã.

3 - A contemplação e a ação, doseadas certamente de muitas e variadas maneiras, fazem parte da vida de qualquer cristão. Imitadores de Jesus que diariamente mergulhava na fonte viva do amor do Pai para depois anunciar aos homens o Reino de Deus por palavras e obras poderosas, nós não podemos separar, no concreto da nossa vida, o que significam estas duas irmãs. Nem Maria sem Marta nem Marta sem Maria! Maria sem Marta pode fechar-nos num pietismo intimista em que a preguiça, a soberba e a luxúria espiritual nos dão a ilusão de irmos adiantados no caminho da perfeição. Marta sem Maria é esse ativismo vaidoso e estéril, hoje tão divulgado, que nos projeta para fora, para a superficialidade e para uma vida espetacular, a fim de mostrarmos as grandes coisas de que somos capazes, contando apenas connosco mesmos. E isto, quase sempre, sob a capa de uma falsa caridade que em nós começa e em nós acaba.

Hoje, neste mundo que é o nosso, se precisamos de ter discernimento em relação à passividade de Maria precisamos sobretudo de não embarcar no pragmatismo, na agitação e na dispersão de Marta; há neste mundo realidades bem mais importantes que o trabalho e o dinheiro! Não podemos resignar-nos a que as coisas urgentes atropelem o único necessário e nos privem da intimidade com o Senhor que é a nossa herança. Com Maria busquemos primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais nos será dado por acréscimo (cf. Mt. 6,33). Se, desprezando Maria, damos razão a Marta e fazemos do trabalho uma idolatria pensando que por acréscimo virá o Reino de Deus, reduzimos a nossa vida a uma corrida atrás do vento e a uma soma de desilusões.

Em suma: que espécie de discípulos somos nós? Como recebemos Jesus? Recebemo-l’O como Marta que permanece no centro de tudo e quer instrumentalizá-l’O, recebemo-l’O para que nos fique muito obrigado e nos dê razão, para Lhe podermos dar ordens e para que Ele nos ajude a atingir os nossos objetivos, ou recebemo-l’O como Maria, imagem do verdadeiro discípulo, reconhecendo n’Ele o Senhor, recebemo-l’O para O escutarmos e Lhe obedecermos e para nos pormos ao seu serviço? 


- S. Bento resumiu em duas palavras a sua Regra que deu uma estrutura espiritual e moral à Europa: ora et labora (reza e trabalha). Assim, por esta ordem. Aconteceu porém que, substituindo Cristo por um ideal de homem posto idolatricamente no centro do universo como medida de todas as coisas, esta civilização desprezou a oração e a relação com Deus para exaltar o trabalho. Expulsou Maria e a vida espiritual e explora ao máximo a pobre e desalmada Marta para que dê lucro, coisas, bens materiais, mas que perdeu o único necessário. Divorciada de Cristo que a dignificou como ninguém e seduzida pelo mundo que a engana e manipula para servir o dinheiro e o lucro, esta Marta sem Cristo e sem Maria está agora ao serviço do neopaganismo que cresce rapidamente nesta civilização e também dentro da Igreja, como joio no meio do trigo. Cuidado com ela que vive submetida à vaidade e precisa de ser libertada da servidão da corrupção (Rm8,20-21)!

O Senhor está cá e chama-te! (Jo.11,28) Este recado da Marta do Evangelho a sua irmã é hoje para ti, caro leitor. Abre as portas do teu coração ao Senhor que te chama e recebe-O com alegria. Saboreia a maravilha do seu amor, e tudo o mais te virá por acréscimo!

XVI Domingo do Tempo Comum

+ J. Marcos

Bispo coadjutor de Beja

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